quarta-feira, 19 de junho de 2024

Divórcio e a prática jurídica

Vedado é ao jurista a aplicação das leis más.

Neste sentido, há dupla espécie de lei má, a injusta e a iníqua. O teólogo moral Antonio Peinador, em sua obra "Moral Profesional", as distingue do seguinte modo:

“Distinguimos a lei injusta da iníqua, na medida em que a primeira prejudica apenas direitos particulares e positivos, mas não contém matéria intrinsecamente má: tais seriam as leis que, de alguma forma, favorecem os interesses de uma classe em prejuízo das de outra; aquelas que condicionariam o exercício de certos direitos, de modo que estes seriam de fato anulados, etc. Por leis iníquas entendemos aquelas cujo objeto é algo intrinsecamente mau: por exemplo, aquela que sanciona o divórcio total ou o quoad vinculum; aquela que impôs a esterilização a certos doentes ou criminosos; aquela que permitiria a venda de anticoncepcionais, pertimisse aborto, eutanásia, etc.” (p. 269)
O autor exemplifica, da mesma maneira que a unanimidade dos autores católicos, como lei iníqua o divórcio total, isto é, que torna as partes solteiras perante a lei.
A lei é iníqua porque entre cristãos, católicos ou não, a Igreja é a única autoridade legítima para tratar sobre o matrimônio. Para cristãos, não há matrimônio que não seja indissolúvel e sacramental.
Para os não batizados, como afirma o teólogo moral belga Josef Salmans em sua obra "Deontologia Jurídica", como os judeus, muçulmanos, etc., a opinião comum dos teólogos é que, na falta de autoridade religiosa para eles, "Deus, soberano legislador, confia a regulamentação do matrimônio à autoridade do Estado." (p.89).
Portanto, matrimônio civil entre não batizados é válido, desde que a regulamentação não contrarie a lei natural.
Salsmans assim responde uma objeção e apresenta a malícia do divórcio de maneira eloquente:
“Finalmente, chama a nossa atenção outra objeção que vários juristas estatistas consideram sem resposta. «O divórcio civil, dizem, nada mais é do que a dissolução de um casamento civil. Se o casamento civil constitui um vínculo inválido perante a Igreja, um puro nada, o divórcio civil nada mais é do que a anulação perante o Estado de algo que não existe perante a Igreja; coloca a lei de acordo com a teoria eclesiástica; Então, do que eles estão reclamando?
Este raciocínio é impecável no caso de uma união inválida diante de Deus e diante da Igreja; bem, neste caso, o acordo entre a Igreja e o Estado é restabelecido de fato, se não em teoria, através de uma sentença de divórcio. Mas na maioria dos casos o divórcio tende a romper uma união válida na consciência; e então o desacordo entre a Igreja e o Estado é de fato muito evidente; essa união é indissolúvel perante a Igreja, enquanto o Estado autoriza uma das partes a solicitar a dissolução; então ele sanciona esta ruptura nos fatos; No caso de novo casamento civil de um dos divorciados civilmente, obriga os dois divorciados a viverem separados, com sanções civis e criminais, que não são apenas teóricas. Pode-se conceber uma contradição factual mais óbvia?" (Deontologia, p. 96)
Nesse sentido, sobre a atuação dos juristas, ensinava Pio XII que um juiz católico não poderia pronunciar uma sentença de divórcio quoad vinculum ou total:
"Um juiz católico não pode, salvo por razões da mais alta importância, pronunciar uma sentença de divórcio civil (quando tal for a prática) quando se trata de um casamento válido diante de Deus e da Igreja. Ele não deve esquecer que uma sentença num tal caso, além de ter uma influência prática nos efeitos civis, encoraja de fato a ideia errada de que o vínculo existente está realmente quebrado e que um novo é válido e vinculativo." (Discurso aos Delegados do Primeiro Congresso Nacional de Advogados Italianos. 6 de novembro de 1949)
O juiz deve assim recusar julgar uma causa de divórcio, a menos que seja o mal menor na situação concreta.
Já para os advogados, São João Paulo II ensina:
"Os advogados, enquanto livres profissionais, devem eximir-se sempre de usar a sua profissão para uma finalidade contrária à justiça como é o divórcio; podem apenas colaborar numa ação neste sentido quando ela, na intenção do cliente, não se orienta para a ruptura do matrimónio, mas unicamente para outros efeitos legítimos, que só por este caminho judiciário se possam obter num determinado ordenamento (cf. Catecismo da Igreja Católica, 2383)." (Discurso aos Prelados, Auditores, Oficiais e Advogados da Rota Romana na Inauguração do Ano do Judiciário. 28 de Janeiro de 2002)
O já mencionado teólogo Josef Salsmans detalha o ensino tradicional da Igreja que São João Paulo II destacava:
“Os advogados têm que aplicar máxima prudência antes de aceitar uma defesa de divórcio. - Antes façam todo o possível para induzir o cônjuge que lhes consulta, a renunciar a sua ideia; pondo-lhe diante as dificuldades do processo, a falta de motivos legítimos, se não perante a lei, ao menos ante a razão e a consciência; se a reconciliação parece impossível, procedam de sorte que os esposos se contentem com a separação de corpos. Em suma, pelo menos tome cuidado para não prosseguir com o assunto imediatamente, dando algum tempo para que a pessoa que pede o divórcio reconsidere e pense melhor, especialmente se for vítima de uma teimosia momentânea." (Deontologia, p. 248-249)
O advogado deve primeiramente atuar no sentido de buscar a reconstituição do casal, mas, se isso não for possível, deve tentar como resultado a mera separação de leito e mesa (tori et mensae) ou a separação de corpos, também chamada de divórcio imperfeito.
Todavia, se a separação de corpos não for suficiente, o divórcio só pode ser realizado diante das seguintes condições:
a) Se o casal tiver uma intenção reta, isto é, se buscarem romper apenas o laço civil sem pensar em contrair outro matrimônio;
b) Se houver alguma razão gravíssima, extrínseca e extraordinária. Ex: se a educação dos filhos estiver sendo confiada a um cônjuge ímpio; se for necessária a separação de bens para a sobrevivência do cônjuge inocente; se o outro cônjuge foi quem pediu o divórcio.
Mas, acautela Salsmans se os motivos não forem suficientes:
"Se a exigência dos cônjuges for pecaminosa, especialmente se planejarem outro casamento civil, ou se não quiserem submeter o seu caso ao julgamento da autoridade eclesiástica, o advogado deve recusar absolutamente tal má causa. A cooperação é, com efeito, demasiado direta, demasiado positiva, demasiado considerável para poder desculpar-se (n. 26); por outro lado, ele pode negá-la sem grandes inconveientes (n. 361, 403). Seria, pois, culpável de uma falta grave prestando seu concurso pelo motivo de exercer sua profissão ou ganhar dinheiro" (Deontologia, p. 249)
Diante do exposto, é preciso pontuar um erro comum entre juízes e advogados católicos que muito cauteriza a consciência: tratar o divórcio como uma questão meramente patrimonial, isto é, de partilha de bens. Milhares de advogados e juízes católicos, partindo desse pressuposto, fazem divórcios sem o menor escrúpulo de consciência.
Todavia, o divórcio é uma declaração de fatos, isto é, que uma determinada união já não existe mais na realidade e que, portanto, os efeitos civis devem cessar de existir.
Contudo, como vimos, esta declaração não pode ser realmente dita por ninguém, pois "a lei da indossulibilidade se aplica agora por vontade de Deus a todo o gênero humano sem que tenha outorgado ao Estado poder para dissolver qualquer matrimônio." (Deontologia, p. 90)
O advogado ou o juiz que faz o divórcio sem uma causa grave coopera mortalmente com o mal, pois, ao invés de ser um auxiliar da justiça, ele propaga uma mentira sobre o matrimônio e trabalha contra o bem comum.
Infelizmente, nenhum político católico busca o fim da lei do divórcio, nenhum jurista católico doutrina contra essa lei e a mercantilização da advocacia obscurece a consciência dos advogados, que assinam divórcios sem qualquer oposição.
Talvez, hoje, a profissão jurídica seja uma das mais desafiadoras para um cristão. Piadas sobre advogados não irem para o Céu, lamentavelmente, perigam ser verdade. Nunca foi tão fácil, como atualmente, um advogado perder a sua principal causa, a da salvação, e um juiz sentenciar a pior das sentenças, a da sua própria condenação.
É muito necessário que cresça entre os católicos uma maior consciência da moralidade da sua profissão.

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