segunda-feira, 30 de junho de 2025

Todo Católico é Tradicional? Só os que Tocaram a Tradição. Por que é Justo Ser Chamado Católico Tradicional.

Padres do Instituto Bom Pastor

Os debates recentes em torno do Centro Dom Bosco, conquanto tenham lançado muitos à febre da intemperança, têm servido, ao mesmo tempo, como ocasião para purificar as premissas da controvérsia. Nada como o fogo da discórdia para revelar os metais autênticos de um argumento — ou, pelo menos, separar o ouro das latas.

A última das querelas envolve católicos chamados conservadores que reagem com certa indignação ao apelo de católicos tradicionais para que se “abrace a Tradição”. O fundamento da objeção parece, à primeira vista, razoável: todo fiel que cumpre os preceitos da Igreja seria, em sentido pleno, um católico tradicional. Mas o problema — como quase sempre ocorre nos debates modernos — não está na lógica, mas na linguagem.

Tal objeção, todavia, revela mais uma incompreensão do que propriamente um argumento. Em geral, os chamados católicos tradicionais não empregam a expressão “aderir à Tradição” em sentido meramente canônico ou jurídico, como se bastasse observar os preceitos mínimos da fé. Trata-se, antes, de uma experiência existencial e espiritual: a redescoberta — muitas vezes tardia — da liturgia perene e dos costumes imemoriais da Igreja, quase sempre ausentes das paróquias comuns.

Expressões como “conheci a Tradição” ou “reencontrei a Tradição” nada mais são do que metonímias para descrever essa realidade interior: o assombro diante da liturgia tradicional, o encantamento de quem, pela primeira vez, respira o ar dos séculos, e não o hálito rarefeito das modas transitórias, e o grito de quem, após longo exílio, retorna à pátria. É sobretudo nos ambientes tridentinos que o fiel experimenta, muitas vezes pela primeira vez, essa impressão de eternidade: o contato concreto com a Tradição viva, que não envelhece porque, sendo verdadeira, permanece.

Dizer, portanto, que “toda missa é tradicional” ou que se assiste à “tradicional missa da paróquia do bairro” é, no mínimo, uma forma requintada de autossabotagem — ou melhor, uma forma velada de mentir para si mesmo. A honestidade intelectual exige reconhecer que, em muitas paróquias, o latim desapareceu, o canto gregoriano extinguiu-se, os paramentos clássicos foram relegados ao esquecimento e os costumes imemoriais da Igreja simplesmente deixaram de existir há décadas. Não se trata, aí, de uma questão de gosto pessoal, mas de uma constatação da ruptura cultural e espiritual com o passado.

É nesse ponto que a ironia se impõe: muitos católicos acham que podem preservar a Tradição sem jamais tocá-la. Como um homem que quisesse herdar o patrimônio de família sem nunca visitar a casa dos avós, nem abrir os baús, nem cheirar os livros.

Aqueles que conhecem, ainda que superficialmente, a realidade litúrgica da maioria das igrejas modernas sabem que canções como Romanos 12, entoadas por certos grupos ditos piedosos, não reproduzem — nem remotamente — a experiência da Tradição. Ao contrário, produzem uma espécie de anestesia espiritual, na qual se dissimula a ausência do sagrado com gestos mecânicos e palavras ocas. Persistir em negar essa evidência, sob pretexto de zelo ou obediência, é fechar os olhos ao que salta aos olhos: é escamotear a realidade com fórmulas inócuas — ou, para usar a palavra justa, é faltar com a verdade.

Liturgistas como Klaus Gamber sustentaram que o rito de Paulo VI, por sua gênese e estrutura, seria um criação essencialmente contemporânea, não podendo fornecer uma experiência autêntica da Tradição. Bento XVI, mais otimista, sugeriu que esse rito podia dar essa experiência sendo fecundado pela forma clássica, numa espécie de “mutua enricchitura”. Mas, qualquer que seja a posição, um fato permanece: a maioria esmagadora das paróquias não fornece, nem na forma nem no conteúdo, uma experiência sensível da Tradição. Fala-se da eternidade, mas tudo cheira ao efêmero.

Por isso, afirmar que o rito romano tradicional tem sido, nas últimas décadas, o principal veículo da experiência concreta da Tradição não é juízo opinativo, mas constatação empírica. Sem ele, é ilusório pensar numa restauração da memória litúrgica e espiritual que a Igreja contemporânea tanto necessita.

Eis, portanto, o núcleo da proposta tradicionalista: “aderir à Tradição” significa reconciliar-se com as fontes vivas da fé, reencontrar o elo perdido entre o presente e o passado eclesial. Foi essa também a intenção manifesta de Bento XVI ao liberar generosamente a Missa Tridentina, com vistas a permitir que a Igreja “se reconcilie consigo mesma”.  E se a reconciliação requer memória, a Missa Tridentina é seu álbum de fotografias: apagá-la seria como apagar a própria identidade.

A esse respeito, vale recordar uma lição do Pe. Chad Ripperger. Ao comentar a visão de Leão XIII sobre os cem anos de liberdade concedidos por Deus a Satanás para tentar a Igreja, o sacerdote observa que tal período simboliza o ataque sistemático a tudo quanto é imemorial. Satanás, ao pedir esse tempo, desejava justamente destruir os monumentos da Tradição. Recuperá-los, portanto, é a missão própria do católico tradicional: missão de resistência, de testemunho e de restauração.

É nesse contexto que se compreende, em toda a sua legitimidade, o convite dirigido aos fiéis de outros movimentos e sensibilidades a que conheçam e abracem a Tradição. Não se trata de exclusivismo, mas de coerência histórica e doutrinal. Tradição não é apenas aquilo que acontece dentro da Igreja, mas aquilo que, dentro dela, se transmite com longevidade e universalidade. Um carismático ou um membro do Caminho Neocatecumenal pode, sem dúvida, ser um católico fiel. Mas não pode, por definição, ser considerado tradicional. E a razão é simples: a Tradição exige tempo. A Tradição não se improvisa — ela amadurece no tempo. Um movimento cujo modo de ser tem quarenta ou cinquenta anos pode ser válido, mas ainda não é tradição: é juventude e juventude com todos os seus erros. A juventude pode não ser culpada por eles; mas tampouco pode ensinar com a sabedoria dos anciãos. Não se trata aqui de censura doutrinal, mas de um juízo cronológico.

Em suma: o convite a “abraçar a Tradição”, quando bem compreendido, é mais do que legítimo — é necessário. Pois a crise da Igreja contemporânea é, em boa parte, uma crise de amnésia. E quem perde a memória perde o nome, o rumo e até a fé. Porque não se apaga a memória da Esposa de Cristo sem apagar, pouco a pouco, o rosto do próprio Senhor.

quinta-feira, 12 de junho de 2025

O Direito de Criticar e o Dever de Amar (Porque na Igreja é preciso morder com reverência)

Fundadores da FSSP com São João Paulo II

Ainda sobre a publicação pelo Centro Dom Bosco do livro "Erros do Catecismo Moderno" de Michael Haynes.

A análise serena das relações entre a Santa Sé e os institutos tradicionalistas revela um dado pouco considerado, mas de grande relevância teológica e pastoral: nos acordos firmados com os institutos provenientes da antiga Comissão Ecclesia Dei, jamais se exigiu, como condição prévia de reconciliação, a retratação das críticas feitas ao Concílio Vaticano II por parte dos sacerdotes aderentes.

Pelo contrário, tais acordos reconhecem que, diante de certos pontos doutrinários e disciplinares do Concílio ou das reformas eclesiásticas subsequentes, que pareçam difíceis de conciliar com a Tradição — entendida aqui como a transmissão viva e orgânica da fé apostólica —, os institutos possam adotar uma postura de estudo respeitoso (FSSPX, 1988) ou até de crítica (IBP, Ato de Adesão), desde que se evitem manifestações de polêmica desnecessária.
A Instrução Donum Veritatis, publicada pela Congregação para a Doutrina da Fé em 1990, esclarece este ponto de forma inequívoca. Como demonstrou com acuidade o professor Edward Feser, a crítica teológica — quando realizada dentro dos limites da fé, da caridade e da fidelidade ao Magistério — não se identifica com a dissidência. Ademais, como, por sua vez, apontou o Dr. William May, a crítica assume maior legitimidade quando se volta à luz da Tradição para examinar declarações magisteriais recentes que, à primeira vista, pareçam em dissonância com os ensinamentos anteriores do mesmo Magistério.
Ora, confrontar o Magistério recente com o anterior é justamente a essência da crítica tradicionalista. E talvez por isso mesmo ela seja mais suportada — não por condescendência, mas por coerência — do que a crítica protestante, que não se ergue sobre o fundamento de Pedro, mas sobre o vácuo do livre exame absoluto.
Nesse sentido, o "Breve Exame Crítico do Novus Ordo Missae" é um exemplo luminoso de crítica severa, porém inteiramente tolerada dentro dos limites indicados pela própria Igreja. E outros livros, publicados por padres oriundos dos institutos ex-Ecclesia Dei, seguem a mesma toada: crítica reverente, ainda que firme, como um monge que repreende um imperador.
Cumpre ainda afastar um equívoco frequentemente repetido: a Donum Veritatis não exige que a crítica teológica seja exercida exclusivamente em foro privado, como se o fiel ou o teólogo devesse submeter suas dúvidas apenas ao bispo diocesano, em caráter confidencial, como fazem crer certas opiniões piedosas, mas insensatas. O que a Instrução reprova, com inteira justiça, é a instrumentalização da crítica por meio da mídia de massa, utilizada como instrumento de pressão ou agitação, o que não raro redunda em escândalo ou confusão para os fiéis. A crítica pode ser pública — sobretudo em obras teológicas ou acadêmicas —, mas deve ser sempre sóbria, reverente e construtiva.
Dessa forma, é plenamente possível publicar um livro crítico ao Catecismo promulgado em 1992, contanto que tal obra se paute pelo respeito devido ao Magistério da Igreja e se inspire em espírito de serviço à verdade revelada.
É precisamente neste ponto que se manifesta uma falha recorrente em certos meios tradicionalistas: a tentação da linguagem injuriosa, que em nada contribui para a edificação da fé. O título original da obra de Michael Haynes — A Catechism of Errors — é, sob qualquer critério eclesial, irreverente e desproporcionado. Nada impedia que o autor adotasse um título mais sóbrio e científico, como "Exame Crítico do Catecismo de 1992", que teria exposto sua tese com a dignidade que o tema exige. O Centro Dom Bosco, ao traduzi-lo como "Os Erros do Catecismo Moderno", buscou conferir maior moderação à proposta, mas o esforço acabou neutralizado pela estratégia publicitária da obra, que reforçou o tom polêmico e acentuou o desconforto.
Tais equívocos de forma, embora não alterem substancialmente o conteúdo da crítica, prejudicam sua recepção entre os fiéis, pois o público, que não é teólogo, reage não ao conteúdo do livro, mas ao tom da voz. O resultado é que se deixa de ouvir um argumento e se passa a denunciar um “ataque à Igreja” — e às vezes, com razão. Ao invés de suscitar o debate sereno e o exame objetivo, esses equívocos alimentam suspeitas e reações defensivas. E assim se compreende que muitas críticas feitas à obra não digam respeito à substância do argumento, mas à sua apresentação imprudente.
Mas, antes de tudo isso — antes do barulho, antes da polêmica, antes do escândalo — há uma virtude primária, que já foi chamada de justiça, e que hoje é confundida com curiosidade: ler o livro antes de criticá-lo.
Pode parecer pouco. Mas é o primeiro passo para qualquer católico que deseje defender a verdade com aquela virtude de que tanto falamos e tão pouco praticamos: a caridade.

quarta-feira, 11 de junho de 2025

Depois de Francisco: O Despertar das Linhas de Batalha


O Centro Dom Bosco publicou um livro de Michael Haynes a respeito dos problemas do Catecismo amarelo — e, francamente, não é isso que causa espanto. O CDB vem marchando para cada vez mais perto da Fraternidade São Pio X.

O que, sim, surpreende — e até diverte — é perceber quão numerosas são as almas que nunca ouviram falar do movimento tradicionalista, nem do estranho e velho ofício de discutir apaixonadamente dentro da mesma Igreja. Como se alguém estranhasse que irmãos brigassem na mesma casa por amor ao mesmo pai. São almas que desconhecem por completo as questões que o tradicionalismo introduz nos debates da vida eclesial.

Durante certo tempo, as discussões sobre o Concílio Vaticano II e seus efeitos na vida da Igreja pareceram recolher-se como soldados feridos à sombra de um hospital de campanha — ou melhor, de um pontificado de campo. O “efeito Francisco”, com sua força centrífuga e sua lógica desconcertante, conseguiu adormecer — ou ao menos distrair — os debates teológicos mais profundos com uma avalanche de gestos, improvisos e perplexidades pastorais.

Diversos setores tradicionalistas, bem como alguns segmentos conservadores, foram constrangidos a suspender disputas internas para se unirem na tentativa de compreender e enfrentar um pontificado que, com inquietante clareza, demonstrava resistência, quando não repulsa, à herança doutrinal e litúrgica de viés conservador/tradicional.

O Papa Francisco introduziu no governo da Igreja um estilo inédito entre os pontífices pós-conciliares: mais alinhado às tendências progressistas, não raro marcado por improvisações teológicas, termos recém-criados ("Igreja sinodal", "Igreja samaritana"), e uma retórica frequentemente crítica à Tradição (“indietrismo”, por exemplo). Em consequência, debates outrora centrais — como o significado preciso do subsistit in da Lumen Gentium, a natureza da liberdade religiosa ou o problema teológico do monoteísmo comum com os muçulmanos — foram substituídos por urgências mais imediatas: a disciplina da Eucaristia em casos irregulares, a aprovação implícita de bênçãos a uniões contrárias à moral natural, a severa restrição à Missa tridentina, bem como declarações desconcertantes relativas ao inferno ou ao valor salvífico universal das outras religiões.

Enquanto os tradicionalistas combatiam, no Brasil, floresciam, como brotos em terreno alternativo, os chamados “Missionários Digitais”. Eram apóstolos de outro campo de batalha: mais catequético, mais motivacional, mais instagrâmico. Para eles, as discussões dos tradicionalistas soavam como murmúrios em latim numa estação de metrô. Seus seguidores — em sua maioria recém-convertidos ou neófitos entusiasmados por Frei Gilson e por The Chosen — buscavam fervor, consolo, louvor e estética. A teologia, no entanto, ficava num canto da sala, como um avô cansado. Nomes como Allan Carrion, Santa Carona, Segundo Católico, Colo de Deus e Católicos de Verdade dominavam esse cenário, promovendo um catolicismo acessível, emocional e oficialista — quando não apenas alheio à crise, ao menos inconsciente dela.

Junto a esse universo, erguia-se ainda a torre dos influenciadores do marketing católico, formados na escola pragmática de Ítalo Marsili, Ícaro de Carvalho e, claro, do sempre discreto Opus Dei. Foi uma época em que choveram — como maná requentado — frases de São Josemaria Escrivá e exortações a uma vida de sucesso profissional com oração matinal, missa diária e virtudes bem diagramadas — tudo isso, porém, sem encarar o elefante eucarístico na sala: a ruína da liturgia, o silêncio cúmplice de maus pastores, a decadência doutrinal. Temas que os tradicionalistas, quase sozinhos, continuavam a debater como quem tenta reacender uma lâmpada numa catedral sem luz. Era, muitas vezes, uma espiritualidade de bons costumes e bons contratos.

Com a morte do Papa Francisco, o quadro se transforma. Os tradicionalistas e essas duas correntes que antes corriam em paralelo — missionários digitais e influenciadores pragmáticos — começam a se olhar nos olhos. Muitos “Missionários Digitais” e dos seus seguidores, ainda sem compreensão adequada da teologia e da eclesiologia tradicionalista, reagem ao tradicionalismo como uma criança reage a um trovão: com medo, risos nervosos e, sobretudo, sem entender. E tentam nomear o que não compreendem com palavras herdadas do susto: "sedevacantismo", "protestantismo". Quando, na verdade, tudo não passa do eterno retorno de uma questão que se recusa a morrer: afinal, qual o tamanho que o Vaticano II deve ter na vida católica? Por sua vez, os influenciadores de matriz liberal-católica, como aqueles vinculados ao universo de Marsili e afins, encontram-se em visível declínio. Como o catolicismo nunca foi o centro de suas atividades, a progressiva secularização de seus perfis, agora mais profissionais, confirma uma orientação mais voltada ao sucesso pessoal do que à integridade da fé.

E assim, o que se desenha no horizonte não é o apaziguamento da controvérsia, mas o seu renascimento. O antigo debate sobre o Vaticano II — como um fogo soterrado sob as cinzas — começa a reacender. Tradicionalistas e continuístas retomam seus postos no front, e os fiéis dos missionários digitais, como ovelhas surpreendidas pelo fogo nos dois lados do campo, acabarão se alinhando, cedo ou tarde, a um dos dois exércitos.

Em suma, o que se anuncia não é o fim de uma era, mas o juízo de sua consistência. O “efeito Francisco”, por mais desconcertante que tenha sido, serviu — como um estranho profeta de fábula — para revelar as fragilidades e descompassos da vida católica contemporânea. Mostrou-nos que há um tradicionalismo que resistiu não por nostalgia, mas por convicção; e que há um catolicismo midiático que, por evitar as perguntas difíceis, agora precisa dar respostas inevitáveis.

Todo Católico é Tradicional? Só os que Tocaram a Tradição. Por que é Justo Ser Chamado Católico Tradicional.

Padres do Instituto Bom Pastor Os debates recentes em torno do Centro Dom Bosco, conquanto tenham lançado muitos à febre da intemperança, tê...