Padres do Instituto Bom Pastor |
Os debates recentes em torno do Centro Dom Bosco, conquanto tenham lançado muitos à febre da intemperança, têm servido, ao mesmo tempo, como ocasião para purificar as premissas da controvérsia. Nada como o fogo da discórdia para revelar os metais autênticos de um argumento — ou, pelo menos, separar o ouro das latas.
A última das querelas envolve católicos chamados conservadores que reagem com certa indignação ao apelo de católicos tradicionais para que se “abrace a Tradição”. O fundamento da objeção parece, à primeira vista, razoável: todo fiel que cumpre os preceitos da Igreja seria, em sentido pleno, um católico tradicional. Mas o problema — como quase sempre ocorre nos debates modernos — não está na lógica, mas na linguagem.
Tal objeção, todavia, revela mais uma incompreensão do que propriamente um argumento. Em geral, os chamados católicos tradicionais não empregam a expressão “aderir à Tradição” em sentido meramente canônico ou jurídico, como se bastasse observar os preceitos mínimos da fé. Trata-se, antes, de uma experiência existencial e espiritual: a redescoberta — muitas vezes tardia — da liturgia perene e dos costumes imemoriais da Igreja, quase sempre ausentes das paróquias comuns.
Expressões como “conheci a Tradição” ou “reencontrei a Tradição” nada mais são do que metonímias para descrever essa realidade interior: o assombro diante da liturgia tradicional, o encantamento de quem, pela primeira vez, respira o ar dos séculos, e não o hálito rarefeito das modas transitórias, e o grito de quem, após longo exílio, retorna à pátria. É sobretudo nos ambientes tridentinos que o fiel experimenta, muitas vezes pela primeira vez, essa impressão de eternidade: o contato concreto com a Tradição viva, que não envelhece porque, sendo verdadeira, permanece.
Dizer, portanto, que “toda missa é tradicional” ou que se assiste à “tradicional missa da paróquia do bairro” é, no mínimo, uma forma requintada de autossabotagem — ou melhor, uma forma velada de mentir para si mesmo. A honestidade intelectual exige reconhecer que, em muitas paróquias, o latim desapareceu, o canto gregoriano extinguiu-se, os paramentos clássicos foram relegados ao esquecimento e os costumes imemoriais da Igreja simplesmente deixaram de existir há décadas. Não se trata, aí, de uma questão de gosto pessoal, mas de uma constatação da ruptura cultural e espiritual com o passado.
É nesse ponto que a ironia se impõe: muitos católicos acham que podem preservar a Tradição sem jamais tocá-la. Como um homem que quisesse herdar o patrimônio de família sem nunca visitar a casa dos avós, nem abrir os baús, nem cheirar os livros.
Aqueles que conhecem, ainda que superficialmente, a realidade litúrgica da maioria das igrejas modernas sabem que canções como Romanos 12, entoadas por certos grupos ditos piedosos, não reproduzem — nem remotamente — a experiência da Tradição. Ao contrário, produzem uma espécie de anestesia espiritual, na qual se dissimula a ausência do sagrado com gestos mecânicos e palavras ocas. Persistir em negar essa evidência, sob pretexto de zelo ou obediência, é fechar os olhos ao que salta aos olhos: é escamotear a realidade com fórmulas inócuas — ou, para usar a palavra justa, é faltar com a verdade.
Liturgistas como Klaus Gamber sustentaram que o rito de Paulo VI, por sua gênese e estrutura, seria um criação essencialmente contemporânea, não podendo fornecer uma experiência autêntica da Tradição. Bento XVI, mais otimista, sugeriu que esse rito podia dar essa experiência sendo fecundado pela forma clássica, numa espécie de “mutua enricchitura”. Mas, qualquer que seja a posição, um fato permanece: a maioria esmagadora das paróquias não fornece, nem na forma nem no conteúdo, uma experiência sensível da Tradição. Fala-se da eternidade, mas tudo cheira ao efêmero.
Por isso, afirmar que o rito romano tradicional tem sido, nas últimas décadas, o principal veículo da experiência concreta da Tradição não é juízo opinativo, mas constatação empírica. Sem ele, é ilusório pensar numa restauração da memória litúrgica e espiritual que a Igreja contemporânea tanto necessita.
Eis, portanto, o núcleo da proposta tradicionalista: “aderir à Tradição” significa reconciliar-se com as fontes vivas da fé, reencontrar o elo perdido entre o presente e o passado eclesial. Foi essa também a intenção manifesta de Bento XVI ao liberar generosamente a Missa Tridentina, com vistas a permitir que a Igreja “se reconcilie consigo mesma”. E se a reconciliação requer memória, a Missa Tridentina é seu álbum de fotografias: apagá-la seria como apagar a própria identidade.
A esse respeito, vale recordar uma lição do Pe. Chad Ripperger. Ao comentar a visão de Leão XIII sobre os cem anos de liberdade concedidos por Deus a Satanás para tentar a Igreja, o sacerdote observa que tal período simboliza o ataque sistemático a tudo quanto é imemorial. Satanás, ao pedir esse tempo, desejava justamente destruir os monumentos da Tradição. Recuperá-los, portanto, é a missão própria do católico tradicional: missão de resistência, de testemunho e de restauração.
É nesse contexto que se compreende, em toda a sua legitimidade, o convite dirigido aos fiéis de outros movimentos e sensibilidades a que conheçam e abracem a Tradição. Não se trata de exclusivismo, mas de coerência histórica e doutrinal. Tradição não é apenas aquilo que acontece dentro da Igreja, mas aquilo que, dentro dela, se transmite com longevidade e universalidade. Um carismático ou um membro do Caminho Neocatecumenal pode, sem dúvida, ser um católico fiel. Mas não pode, por definição, ser considerado tradicional. E a razão é simples: a Tradição exige tempo. A Tradição não se improvisa — ela amadurece no tempo. Um movimento cujo modo de ser tem quarenta ou cinquenta anos pode ser válido, mas ainda não é tradição: é juventude e juventude com todos os seus erros. A juventude pode não ser culpada por eles; mas tampouco pode ensinar com a sabedoria dos anciãos. Não se trata aqui de censura doutrinal, mas de um juízo cronológico.
Em suma: o convite a “abraçar a Tradição”, quando bem compreendido, é mais do que legítimo — é necessário. Pois a crise da Igreja contemporânea é, em boa parte, uma crise de amnésia. E quem perde a memória perde o nome, o rumo e até a fé. Porque não se apaga a memória da Esposa de Cristo sem apagar, pouco a pouco, o rosto do próprio Senhor.