sexta-feira, 19 de julho de 2024

O PHN é um avivamento católico? Uma breve reflexão.


No último 14 de julho, foi encerrada a 26ª edição do acampamento PHN ("Por Hoje Não") em Cachoeira Paulista - SP cujo tema foi "Ou Santos ou Nada".

O evento contou com um recorde de público contando com cerca de 187 mil fiéis. O acampamento teve ainda a participação de católicos influentes como Frei Gilson, Pe. Roger Luis, Pe. Paulo Ricardo, Pe. Marcelo Rossi, entre outros.

Em nosso artigo "Conservadores católicos se rendem à imodéstia" destacamos que duas características da vibe católica do momento são a indiferença à crise litúrgica e a mundanização da santidade:

Indiferença à crise litúrgica. Abandonou-se o debate sobre a qualidade das missas. Jargões como "Domingo sem missa, semana sem graça", mesmo numa celebração cheia de abusos litúrgicos e música insuportável, passaram a ser a tônica do momento. De repente, os abusos não têm mais importância, desde que haja muita "devoção" na liturgia. Sem nenhuma surpresa, o carismatismo ganhou grande força entre católicos conservadores nos últimos anos. 

Mundanização da santidade. O arquétipo de santo para esses católicos é o que chamaremos de "santo de calça jeans", isto é, aquele que se parece mais mundano do que cristão; aquele que pouco renuncia às coisas mundo. É santo, mas vai à praia, à balada, aos shows, etc. Santo não é mais aquele que pratica a caridade e a penitência com heroísmo, e sim aquele que é "feliz por ser católico" e também por ser mundano.

Vemos no carismatismo brasileiro algo semelhante. É comum ouvir de pregadores carismáticos exortações à santidade com dizeres do tipo "Precisamos ser santos", "Nascemos para a santidade" seguindo-se por inúmeras frases de santos. Todavia, ignoram os instrumentos ordinários que forjaram os santos durante a História da Igreja.

A grande forja de santos e maior fonte de vida da Igreja é a Sagrada Eucaristia. O amor à Eucaristia pode-se traduzir em piedade litúrgica. Um autêntico avivamento católico precisa necessariamente passar pelo avivamento litúrgico. Esta é a conclusão mais manifesta que se extrai do  ensino da Sacrosanctum Concilium:

"Contudo, a Liturgia é simultâneamente a meta para a qual se encaminha a ação da Igreja e a fonte de onde promana toda a sua força. Na verdade, o trabalho apostólico ordena-se a conseguir que todos os que se tornaram filhos de Deus pela fé e pelo Baptismo se reunam em assembleia para louvar a Deus no meio da Igreja, participem no Sacrifício e comam a Ceia do Senhor.

A Liturgia, por sua vez, impele os fiéis, saciados pelos «mistérios pascais», a viverem «unidos no amor»; pede «que sejam fiéis na vida a quanto receberam pela fé»; e pela renovação da aliança do Senhor com os homens na Eucaristia, e aquece os fiéis na caridade urgente de Cristo. Da Liturgia, pois, em especial da Eucaristia, corre sobre nós, como de sua fonte, a graça, e por meio dela conseguem os homens com total eficácia a santificação em Cristo e a glorificação de Deus, a que se ordenam, como a seu fim, todas as outras obras da Igreja." (n. 10)

"Avivamento", portanto, só pode ter como causa a fonte de vida da Igreja, isto é, a Liturgia, visto que é dela é que a Igreja retira toda a sua força.

Contudo, quando observamos as missas do PNH ou carismáticas em geral, constatamos que a missa, muitas vezes, é apenas um apêndice dos shows carismáticos.

Nota-se, por exemplo, a Missa do Pe. Marcelo Rossi no PHN deste ano: 

Verificamos nesta missa os mesmos erros que citamos no artigo "Sobre o Tradismatismo":

A Renovação Carismática ainda possui muitos trejeitos protestantes. Ela não consegue separar muito bem, por exemplo, o que é próprio para grupos de oração do que é adequado para a liturgia.

A RCC, ordinariamente, ao invés de se render ao sensus perennis universalis Ecclesiae da tradição musical católica, promove na liturgia, via de regra, a marca e o estilo dos seus próprios grupos, geralmente gospel, e assim massificam o seu produto musical.

Toda a missa do Pe. Marcelo é envolvida por músicas não litúrgicas, pedido de palmas, conversações intermináveis, performances, isto é, imersa em abusos litúrgicos.

Note-se ainda que, ao pronunciar as Palavras da Consagração, Pe. Marcelo envolve o ato de certa teatralidade sorrindo o tempo todo para as espécies eucarísticas e apenas narrando  a Última Ceia como um fato histórico [01:03:34]. Não se vê traços de assertividade em suas palavras. Este modo de consagrar pode ocasionar defeito na forma do sacramento como bem observa o teólogo moral Merbelbach em  sua "Summa Theologiae Moralis":

"As Palavras da Consagração devem ser pronunciadas não apenas como se ditas por Cristo historicamente, narrativamente ou recitativamente, como propósito de narrar aquelas coisas que Cristo fez... mas elas devem também ser ditas assertivamente ou significativamente, com o propósito de imitar Cristo e aplicar as palavras ao que está presente [o pão e o vinho]"

O clima festivo que toma conta do ars celebrandi das missas da RCC, muitas vezes, é uma grave distração para o sacerdote que, no instante da consagração, não pronuncia das Palavras da Consagração com a seriedade que deveria pronunciar.

Do exposto, como é possível haver um avivamento católico quando se despreza quase que por completo a piedade litúrgica?

Digamos já a resposa: não é possível.

O avivamento por meio da piedade litúrgica é o que distingue especificamente o avivamento católico do protestante. Façamos a distinção.

Avivamento protestante: É orientado unicamente como uma forma de (1) "libertar os protestantes do imanenismo ateu ou experiências religiosas meramente individuais", (2) ajudá-los a suportar as carências de uma vida sem os sacramentos da Igreja e (3) prepará-los para receber a Evangelização da Igreja (Evangelii Gaudium, 284). Ou seja, fora da Igreja Deus pode suscitar a religiosidade natural do ser humano para que a desgraça do mundo e das pessoas não seja completa. Não há orientação litúrgica desses avivamentos.

Avivamento católico: Toda a espiritualidade não-litúrgica está ordenada para a espiritualidade litúrgica, para que esta seja o principal motor de santificação dos fiéis. É isto o que ensina, novamente, a Sacrosanctum Concilium:

"A participação na sagrada Liturgia não esgota, todavia, a vida espiritual. O cristão, chamado a rezar em comum, deve entrar também no seu quarto para rezar a sós ao Pai, segundo ensina o Apóstolo, deve rezar sem cessar. E o mesmo Apóstolo nos ensina a trazer sempre no nosso corpo os sofrimentos da morte de Jesus, para que a sua vida se revele na nossa carne mortal. É essa a razão por que no Sacrifício da Missa pedimos ao Senhor que, tendo aceite a oblação da vítima espiritual, faça de nós uma «oferta eterna» a si consagrada.

São muito de recomendar os exercícios piedosos do povo cristão, desde que estejam em conformidade com as leis e as normas da Igreja, e especialmente quando se fazem por mandato da Sé Apostólica.

Gozam também de especial dignidade as práticas religiosas das Igrejas particulares, celebradas por mandato dos Bispos e segundo os costumes ou os livros legitimamente aprovados.

Importa, porém, ordenar essas práticas tendo em conta os tempos litúrgicos, de modo que se harmonizem com a sagrada Liturgia, de certo modo derivem dela, e a ela, que por sua natureza é muito superior, conduzam o povo." (n. 12-13)

São Pio X em Tra Le Sollicitude também ensinou que, para o renascimento do espírito cristão no mundo, seria necessário promover a piedade litúrgica:

"Sendo de fato nosso vivíssimo desejo que o espírito cristão refloresça em tudo e se mantenha em todos os fiéis, é necessário prover antes de mais nada à santidade e dignidade do templo, onde os fiéis se reúnem precisamente para haurirem esse espírito da sua primária e indispensável fonte: a participação ativa nos sacrossantos mistérios e na oração pública e solene da Igreja."

Portanto, uma avivamento católico cheio de pregações, orações e louvor devem suscitar maior piedade litúrgica. Se não houver este resultado, o avivamento simplesmente não é verdadeiro.

Sabe-se que o PHN não é conhecido pela dignidade das missas, mas por reunir figuras conhecidas do meio carismático para shows e pregações, não sendo muito diferente em essência dos retiros protestantes. Assim, não é irrazoável concluir que o sucesso do PHN se dê principalmente enquanto espetáculo para massas e não propriamente pela ação da graça divina.

A respeito, bem pontuou o filósofo Joathas Bello em suas redes sociais:

A efusividade do carismatismo, as grandes concentrações das JMJ's, o sucesso dos "padres cantores"... nada disso é sinal de qualquer vitalidade católica.

Este tipo de manifestação é o de uma alegria exterior, que em muitos casos pode até não ser pecaminosa (carnal), mas que não é signo particular da alegria da conversão. Em si mesma, é só uma alegria explicável humanamente.

Que o conteúdo (do evento, das canções, da intenção psicológica ou subjetiva) sejam católicos não tem nada a ver com o ser uma expressão da alegria cristã propriamente dita. Em si mesma, essa expressões não são índice algum da Verdade do Catolicismo ou da presença do Espírito Santo.

O mesmo equívoco "exteriorista" se passa até com certos motivos da apologética clássica: a "rápida expansão" ou o "morrer pela causa" não são indícios de verdade alguma, à parte do contexto integral e dos motivos reais.

A Fé é uma "forma" interior de ser (a partir de um modo de entender e amar profunda e espiritualmente); ela tem de alcançar estas formas humanas exteriores, por óbvio, mas isto não se faz, por exemplo, com expressões "carismatistas" que justapõem às formas de alegria no mundo um teor católico meramente lógico e imaginado (não transformante da mente e do coração).

Do mesmíssimo modo que, por exemplo, um fiel do Opus Dei (ou qualquer católico) não "santifica o trabalho" só por fazer sucesso ou cumprir tecnicamente bem sua tarefa e justapor uma intenção psicológica católica ao que faz; mas o santifica apenas e tão somente se o cumpre como penitência, sem ambição de riqueza, para colaborar com sua casa e o próximo mais do que com "o desenvolvimento da humanidade" (sic) etc. 

Ou seja, nunca se é católico simplesmente juntando um conteúdo cristão ao que já se faz (entenda-se, que não seja pecado objetivo, obviamente), mas somente mudando essencialmente a forma espiritual que anima a atividade exterior. 

E como o lugar por excelência para aprender a forma interior católica é o culto, a ideia de "adaptá-lo ao homem moderno" (que é  essencialmente "homem exterior") é uma tragédia anunciada.

Para aprender a ser católico "por dentro" temos que aprender a adorar retamente como os santos de todos os tempos. Nos santos do nosso tempo, o "nosso tempo" é acidental. Ele não pode refluir sobre a forma celebrativa, excluir a atitude contemplativa e o espírito expiatório, mas tem de ser interiormente modificado desde a posse da Fé interior de sempre.

Por isso, a principal tarefa pastoral católica é a preservação e expansão da Missa Romana Tradicional e do Canto Gregoriano.

Estamos dizendo com isso que Deus nunca suscita outras formas de avivamento além do litúrgico? Não. Arguimos que todos os avivamentos autênticos dentro da Igreja devem reforçar a piedade litúrgica.

Por que o Movimento Litúrgico na sua fase final não foi um avivamento autêntico dentro da Igreja? Porque ele desembocou na Revolução e na impiedade litúrgica.

Por que o PHN não é um avivamento autêntico? Porque todos os anos ele acontece, mas em nenhum há um sacerdote que se digne a realizar uma única missa de acordo com as normas e a Tradição litúrgica da Igreja.

Como pode ser verdadeiro um avivamento, se ele não se orienta pela principal fonte de santificação da Igreja, a Liturgia?

Impossível.

sexta-feira, 12 de julho de 2024

O novo curso de Bernardo Küster e o Catolicismo Tradicional


Introdução

No dia 10.07.2024, o jornalista católico Bernardo Küster fez uma aula especial para o lançamento do seu curso "Back to basics". A aula foi precedida de diversos anúncios para divulgar a finalidade do curso. A ideia do curso é mostrar como a vivência da fé católica é simples, não sendo uma pessoa menos católica "por não se identificar com grupos tradicionalistas e nem carismáticos, por não fazer parte dos grupinhos e comunidades da Igreja, por não ter opiniões formadas sobre o Santo Padre, o Papa, sobre os vinte e um Concílios ou sobre as missas nova e tridentina, ou não saber latim castiço, por não ter lido a longa Suma Teológica e os cinquenta e quatro volumes da Coleção Patrística. Não! Não é mesmo. Gente, ser católico é amar, conhecer a Igreja, estar em comunhão com ela, viver a fé de modo simples, autêntico e livre.", conforme pode ser visto no vídeo abaixo:


Bernardo, no curso dos anúncios, apresentou personagens: Ebenézer (católico tradicionalista), Morpheus (talvez, um tradicionalista) e Enzo (progressista). O último foi apresentado apenas na aula especial. Estes personagens foram criados para ilustrar católicos que de alguma forma dificultavam a vida do católico na vivência de uma fé "pura e simples".

Já na aula especial, Bernardo trouxe à discussão três grandes temas que, segundo ele, geralmente dificultam a vivência simples da fé, a saber, a modéstia, o Concílio Vaticano II e relação com os não-católicos. Trataremos de dois destes temas mais a frente.

A nova tendência entre conservadores: incentivo ao básico, desinsentivo à erudição

Observa-se, em primeiro lugar, um fenômeno cada vez mais comum entre católicos conservadores que fazem uso do marketing digital: a alta cultura a baixa altitude.

A expressão foi cunhada por Ronald Robson no livro "Contra a vida intelectual" para descrever o fenômeno das pessoas que falsificam a vida intelectual preterindo o estudo sério e laborioso e se contentam com aulões no Youtube, especiais de Natal da Brasil Paralelo ou cursos de influenciadores que nunca construíram uma obra intelectual de fato.

Com o marketing digital, ademais, o mercado inflou uma longa lista de pseudo-necessidades para se aprender efetivamente algo. Robson exemplifica isto da seguinte maneira:
"o problema da pessoa que quer "iniciar a vida intelectual" é que ela jamais lerá O adolescente antes de ter se "preparado" para tal, pois acredita que antes de ler livros é preciso ter lido Como ler livros."

Bernardo propõe algo parecido, isto é, um curso sobre "como ser católico" sem entrar em grandes divididas ou reflexões sobre obras, eventos e pessoas da Igreja. Em suma, ele busca um empreendimento semelhante ao que fez C.S. Lewis em "Cristianismo Puro e Simples", mas aplicado ao Catolicismo. Em que pese inúmeros protestantes tenham, por exemplo, se convertido lendo os Santos Padres e a Suma Teológica, como o ex-Pastor Alex Jones, Bernardo dá a entender que o estudo destas coisas é dispensável para ser católico. É preciso ser mais "simples". É preciso comprar um curso sobre como ser católico.

A primeira pergunta que devemos nos fazer, portanto, é se, para ser católico, não é necessário ler os grandes livros ou ter opiniões sobre as coisas que ocorrem na Igreja.

Pois bem, a opinião comum dos teólogos católicos é que o fiel realmente precisa adquirir cultura religiosa, principalmente sobre a fé objetiva, para ser católico. A presunção é que católicos que não alimentam sua fé com o estudo dela, estão mais sujeitos a pecar contra ela. Neste sentido:

Antonio Royo Marin em "A Fé da Igreja":

"[Os principiantes] procuração entender e aumentar o conhecimento das verdades da fé estudando os dogmas católicos usando de todos os meios a seu alcance (catecismos explicados, obras de formação religiosa, conferências e sermões, etc.), aumentando assim sua cultura religiosa e estendendo seus conhecimentos a um maior número de verdades reveladas (crescimento extensivo da fé objetiva)." (p. 108)

Pe. Adolphe Tanquerey em "Compêndio de Teologia Ascética e Mística": 

"Para alcançar este conhecimento afetuoso de Deus três meios principais se nos apresentam: 1º o estudo piedoso da filosofia e da teologia; 2º a meditação ou a oração; 3º o hábito de ver a Deus em todas as coisas." (n. 443)

"[Os principiantes] recitarão com humildade e firme convicção os atos de fé, dizendo com os Apóstolos: <<adauge nobis fidem>>. Mas à oração, hão de ajuntar o estudo, ou a leitura de livros apropriados, que os esclareçam e confirmem a fé." (n. 1182.B)

Pe. Luiz Fernando Pasquotto (IBP):

"Caríssimos, São Paulo nos diz "Sede meus imitadores e olhai atentamente para aqueles que vivem segundo o exemplo que nós vos demos" (Fp 3,17).

Numa família os pais sabem que cada filho que nasce significa começar a educação tudo de novo. [...] E aqui na capela e em cada apostolado é a mesma coisa. [...] A formação dos fiéis tem dificuldades a mais do que a educação das crianças pelos pais. As crianças ainda não tem maus hábitos logo no início que os fiéis têm. Os fiéis quando chegam no apostolado carregam consigo hábitos e modos de ver as coisas (hábitos operativos e intelectuais, para usar os termos escolásticos) que as crianças não nascem com eles.

[...] Os padres não são oniscientes e os fiéis não são desprezíveis. Não se trata disso. Mas os padres tem quilômetros e quilômetros rodados de confissões nas costas e de conversas sacerdotais com outros padres que também tem quilômetros e quilômetros de confissões nas costas.

[...] A pessoa da internet não recebe retorno das outras pessoas dizendo "Ai amiga, sabe aquela coisa que você me falou? Deu problema. A gente pecou.". [...] Se uma coisa dessas acontecer, a pessoa lá da internet não vai pegar a câmera dela e gravar uma retratação. [...] Elas nunca confessarão as consequências dos conselhos que deram.

[...] A desorientação e a confusão generalizada é um dos temas mais tratados nesta capela. [...] É curioso como hoje em dia os católicos todos se misturaram com as obras e os princípios dos pagãos. O que nos decapitava há 200 anos agora nós abraçamos como se fossem as coisas fantásticas do mundo. [Antes]: os princípios que salvavam o gênero humano da desordem moral; depois: praia, piscina, cinema, roupa, contracepção, modo de usar o dinheiro... e as pessoas acham que são católicas. E tudo isso complica e torna mais difícil a formação dos fiéis que vem chegando.

[...] Os fiéis também precisam dedicar-se a se formar. É necessário começarem a cair em si, a acordar. Certas coisas em torno de nós estão muito erradas. É necessário querer enxergar as coisas partir do príncipio de que por aí fora está tudo errado e que você terá que revisar tudo o que se aprendeu e o que se fez. [...] É necessário se dar conta disso para começar a aprender de fato e ir mais atrás das coisas por livros. Os padres falaram alguma coisa? Vá atrás. Peça ao padre algum livro que ele recomenda. Pegou um um livro muito bom? Olhe a bibliografia. Vá à última página e veja a lista de livros que aquele autor muito bom se baseou para escrever o livro dele. Comece a ver autores que são sempre usados, sempre recomendados e tenha eles sempre na sua biblioteca. As coisas estão ensinadas de maneira mais correta, a princípio, nos livros.

Influenciadores tem muitos motivos para propagarem um catolicismo adaptado a todo tipo de ideias, filosofias e ideologias que tornam vocês fracos, servindo aos propósitos particulares deles. Informação barata e ruim tem na internet. O conteúdo profundo e prático está nos livros e nos padres que foram formados para formarem vocês como católicos de verdade, mas nós também queremos que vocês façam a sua parte. [...] Cuidado com informações baratas na internet. Fontes de formação boa são:

a) o clero bem formado e fiel à doutrina da Igreja;

b) os livros corretos que foram sempre utilizados por aqueles que praticam a religião católica corretamente.

[...] Quantas vezes vi pessoas tratando de questões ligadas à vida conjugal... Não irei dar detalhes aqui, mas são coisas impensáveis de serem tratadas na internet. Olha, é uma vergonha. Qualquer um pode acessar sem precisar de fato estar lendo aquelas coisas. Isso pode dar muito problema. Um só pensamento malicioso que venha daí e que a pessoa consinta ela pode cometer pecado mortal. E a pessoa [da internet] fica escrevendo coisas em público que qualquer um pode acessar. Isso aqui é uma vergonha. Uma falta de vergonha. [...] Isto não pode acontecer. [...] Isso aqui estraga vocês. Essas pessoas querem sucesso e serem faladas na internet. Elas não tem noção até onde as questões morais que são enviadas pra elas podem chegar. E nem vou falar até onde as coisas podem chegar em gravidade e inconsequência das respostas. Tenham cuidado com isso e se formem de maneira razoável pelos padres que formam vocês, que são fiéis à doutrina católica."

Padre Luiz Fernando Pasquotto. Sermão para o 23º Domingo depois de Pentecostes (05/11/2023)

Os teólogos ainda diferenciam o modo como cada fiel deverá acolher a fé. A respeito:

Pe. Miguel Nicolau em "A Crise da Igreja":

"Em suma, a fé autêntica, tal como nós, católicos, a entendemos, pressupõe e exige uma certeza racional prévia do fato da revelação de Deus. Desta forma, a fé será um assentimento prudente, firme e irrevogável, que são propriedades do verdadeiro ato de fé. Para as crianças e os rudes, a “respectiva” certeza deste fato da revelação será suficiente; Para muitos adultos, a certeza <<vulgar>>> do mesmo será suficiente. Mas aos estudantes universitários e aos estudantes de teologia que queiram proceder cientificamente devem ser dadas demonstrações científicas e objetivamente válidas deste fato fundamental para a fé." (n. 108)

O modo como crianças e rudes, incapazes de compreender demonstrações científicas da fé, a certeza do fato da revelação será respectiva, isto é, com base na afirmação do pai ou da mãe, do professor católico, do catequista ou do pároco.

Para muitos adultos não-eruditos bastará a certeza vulgar da fé. A certeza vulgar consiste naquela baseada em motivos de credibilidade conhecidos reflexamente, mesmo que de maneira confusa. Será, muitas vezes, aquela certeza adquirida da frequência regular a Igreja, na se qual aprende que a Igreja deve ser Una em razão de estar em todo mundo e ser dirigida por um único chefe, o Papa.

Para os católicos eruditos caberá a estes a certeza científica da fé. Estudar os motivos de credibilidade da Igreja, apologética, filosofia e teologia será uma atitude necessária para o crescimento da fé.

Aqui talvez resida um dos principais enganos dos católicos conservadores, principalmente daqueles expoentes do opusdeísmo cultural. Muitos deles ao contemplarem a plêiade de santos que eram crianças, jovens ou rudes concluem que é dispensável o conhecimento e os juízos que, em regra, só os católicos com mais erudição conseguem alcançar. Confunde-se o simples com o simplório. Esta mentalidade enseja a relativização de muitas verdades que o católico precisa saber e praticar. Isto ficará claro nos próximos tópicos.

Por hora, conclui-se que, sim, o crescimento da fé exige progressos na vida de estudos de um católico. Conforme o grau de erudição, poderá ele captar mais ou menos realidades que estejam em conformidade com a fé da Igreja. Assim, um católico que estude ordinariamente liturgia terá opiniões bem formadas sobre a crise litúrgica que vivemos. Uma "tia do terço", provavelmente não. É melhor, todavia, para a vivência da fé católica, que tenhamos mais pessoas de fé que saibam discernir o trigo do joio do que ter apenas senhorinhas bem intecionadas.

Sobre a modéstia

Na Aula Especial, Bernardo, para ilustrar problemas que, geralmente, dificultam a vivência de uma fé simples, apresenta o tema da modéstia.

Trancrição:

"O Ebenézer acha que mulher não deve usar calça nunca, jamais. Nem para a academia. Só saia na altura do tornozelo pra baixo. Nada de ombros à mostra. [Decote] é 5 cm do pescoço em volta. Nada de unhas vermelhas, batons. Nada. Os homens, bermuda? Jamais. Ai do homem que pisar na Igreja sem traje social completo. A rigor com um colete e camisa abotoada até em cima esganando. Qualquer coisa diferente disso é pecado, pecado de irreverência para com Deus.

Mas tem outro tipo. Qual seria a opinião do nosso católico de geleia, aquele que não usa a razão e se baseia nos sentimentos. Este tipo [...], o Enzo, acha que não tem problema nenhum botar um shortinho florido todo "bacanudo", havaianas, uma camisa cavada aqui, uma regatinha para participar do sacrifício incruento de Cristo como quem vai pegar uma praia logo em seguida. Ele acha que não tem nada demais a namorada dele sair da academia e dar uma passadinha rápida na Igreja com roupa colada...

Fora essa loucura, o que é o básico, o que é o essencial na discussão sobre modéstia?

Primeiro, para começar, reduzir modéstia a roupa é sinal de burrice. É um erro tremendo! Você tem que entender que modéstia nada mais é do que a manifestação externa, pra fora, de uma virtude interna que você já carrega em você chamada temperança.

A temperança ajuda a ordenar os nossos desejos, a ter autocontrole, moderação, equilíbrio, sobriedade, autodomínio. Por exemplo, se você pegar os bons livros, não os ruins que, às vezes, circulam por aí sobre o assunto, você vai ver que o tema da modéstia do vestir sempre vem acompanhada de uma palavrinha chamada costume. O que é costume? O costume da época, a moral do local que os papas sempre falaram. Ou seja, você acha que uma mulher usando uma calça, não as embaladas à vácuo, mas aquela normal, você acha que isso foge ao costume da nossa época? Me responda!"

Em seguida, Bernardo passa a apresentar Santa Joana D'Arc de armadura, Santa Gianna Molla de calça, Beato Carlo Acutis numa trilha e o Venerável Guido Schaeffer surfando na praia. Segundo Bernardo, estes exemplos são para dar um "empurrãozinho" para o expectador tirar suas próprias conclusões sobre modéstia.

Bernardo diz que Santa Joana conduziu o exército francês em Guerra dos 100 anos, usou roupas masculinas, utilizou calças até o último momento de sua morte.

Sobre Santa Gianna, Bernardo apresenta ela como mãe, médica, santa, mas que usava calças.

Depois de mencionar Carlo Acutis e Guido Schaeffer, Bernardo pergunta aos expectadores se alguém vai questionar se eles foram santos ou modestos só porque eles usaram bermuda ou calça.

Bernardo termina o tema dizendo:

"Quando você sabe o essencial sobre o tema e o que Deus espera de você, você se torna capaz de buscar a virtude da temperança, de agir e pensar de modo modesto. Porque modéstia é, acima de tudo, sobre não chamar a atenção para si. Vou repetir: Não chamar a atenção para si." [47'45"]

Ao que parece, a aparição do personagem Enzo é apenas uma cortina de fumaça. O alvo deste tema são os tradicionalistas, que são os primeiros a questionarem o uso de calças e de outras roupas masculinas por mulheres. Bernardo os caricaturiza, pois, obviamente, não há grupos tradicionais conhecidos (IBP, Administração Apostólica, FSSPX, etc.) que obrigam homens usarem roupas sociais e mulheres vestidos pouco acima do tornozelo.

Sabe-se que a esposa de Bernardo, Glória Küster, é consultora de moda e estilo (profissão oriunda de um problema pós-moderno que explicaremos), de acordo com o seu Instagram, mas de uma moda "Opus Dei", em que ser modesto significa principalmente estar elegante conformemoda atual, e não necessariamente de acordo com os princípios da modéstia no vestir. Não é improvável que Bernardo seja muito influenciado pela esposa neste assunto.

Para qualquer um que leia o artigo "Critérios seguros para a modéstia no vestir" verá com nitidez que o entendimento de "modéstia" de Glória não se coaduna com os princípios indicados por padres, santos e teólogos sobre o tema, mas com o de "elegância" atual, muito incentivada pelo opusdeísmo cultural. Exceto a cobertura das partes privadas, nenhum outro princípio é observado por Glória em suas dicas de moda.

Em seu Instagram há dicas para valorizar as pernas:


Incentivo ao uso de mini saia:

Valorização de princípios que são perigosos para a modéstia no vestir como o da independência e autonomia para se vestir como se quer:


Basta. Voltemos ao Bernardo.

Primeiramente, o jornalista alega que quando se sabe o essencial sobre modéstia é possível agir de modo modesto. Concordamos. Mas Bernardo acerta na definição sobre modéstia, isto é, sobre o essencial desta virtude? Não, não acerta.

Bernardo cai no mesmo erro de Angélica Baldi que relatamos no artigo "Conservadores católicos se rendem à imodéstia", no qual a terapeuta dá a mesma definição de modéstia de Bernardo, isto é, que esta virtude consiste em "passar despercebido". Todavia, como expusemos, esta definição de modéstia é completamente desconhecida pelos teólogos católicos.

Se "passar despercebido" fosse a definição de modéstia, será que os modelos de "estilo criativo" de Glória Küster passariam no teste?


Evidente que não.

Bernardo também se concentra no problema da calça. Tradicionalistas são os principais objetores do uso de calças e Bernardo busca respondê-los. Contudo, não seria prudente se perguntar se o argumento tradicionalista não é verossímil sobre este tema?

Façamos uma digressão.

A calça foi pensada para facilitar a destreza no andar, os trabalhos pesados e a luta numa guerra. Ou seja, quando foi imaginada, se presumia o uso da calça em um universo essencialmente masculino e até século XX ela não era popular entre as mulheres.

São Pio X, no ano de 1911, em publicação do Osservatore Romano, condenou as calças jupe culotte de estilistas como Paul Poiret, não porque fossem imodestas, mas porque eram feitas para eliminar as diferenças sexuais e se tratava de uma moda contrária às leis francesas, já que se proibia o uso de calça por mulheres (foram proibidas até o ano de 2013).

Cardeal Siri, por sua vez, certa vez alertou que as calças não contribuíram para um aumento de feminilidade. Ao contrário, segundo o Cardeal, as calças:

1. mudaram a psicologia da mulher, que passou a se ver igual a um homem.

2. corromperam as relações entre homens e mulheres, pois a calça sensualizou a mulher.

O teólogo Arthur Vermeersh indica como “vestes proibidas”, pecaminosas, entre outras, aquelas “que se apegam de tal maneira ao corpo que, ou exibem toda a forma do corpo ou acentuam as características sexuais. (Teol. Moralis Princípia-Consiliae-Responsa. De Ornatu muliebri, nº 126, cfra. Zalba: Theol. Moralis V. II, 236 1-b; Dicionário de Theol. Moralis – Verbete: “vestido”).

Ora, um Papa condenou uma calça que seria tida por católicos conservadores como "modesta", um país inteiro proibia calças femininas até o século XXI e teólogos e homens da Igreja diversas vezes advertiram sobre perigo social delas. Será mesmo que não é legítima a objeção que tradicionalistas trazem? Não é justo que busquem elevar o padrão da modéstia questionando o uso feminimo de uma peça que já foi considerada por eclesiásticos e autoridades públicas como imodesta e masculizante?

Conservadores simplesmente não conseguem responder adequadamente esta objeção demonstrando que a preocupação do "Ebanézer", neste ponto, é infundada. Então o que fazem? Apelam para o exemplo dos santos. Porque usar nominalisticamente o exemplo dos santos é a forma mais fácil de esquivar-se de uma confrontação real de ideias.

Bernardo aqui não faz diferente. Apresenta Santa Joana D'Arc e Santa Gianna Molla em favor da calça. Comecemos com Santa Joana.

Bernardo descreve Santa Joana como uma mulher que liderava um exército e que usava roupas masculinas até o fim da sua vida. Pois bem, perguntemos: será que ser guerreira e usar roupas masculinas é um modelo para as mulheres? É claro que não!

Conforme demonstramos no artigo "O Trabalho da Mulher Casada e a Direita Feminista", São Pio X ensinou que a guerra está fora da esfera adequada para as mulheres:
“Depois de criar o homem, Deus criou a mulher e determinou a sua missão, a saber, a de ser sua companheira, auxílio e consolação… É um erro, portanto, sustentar que os direitos da mulher são iguais aos do homem. As mulheres na guerra ou no parlamento estão fora da sua esfera adequada, e a sua posição lá seria ser o desespero e a ruína da sociedade. A mulher, criada como companheira do homem, deve permanecer sob o poder de amor e carinho, mas sempre sob seu poder. Quão equivocado, portanto, é esse feminismo que busca corrigir a obra de Deus. É como um mecânico tentando corrigir os sinais e movimentos do universo. As Escrituras, e especialmente as três epístolas de São Paulo, enfatizam a dependência da mulher do homem, o seu amor e assistência, mas não sua escravidão a ele.”

Além disso, o uso de roupas masculinas só pode ser escusado em caso de necessidade, como ensina o Aquinate:

“O vestuário exterior deve ser consistente com o estado da pessoa, de acordo com o costume geral. Portanto, é em si pecaminoso que uma mulher use roupas de homem, ou vice-versa; especialmente porque esta pode ser a causa do prazer sensual; e é expressamente proibido na Lei (Dt 22)… No entanto, isso pode ser feito às vezes por alguma necessidade, seja para se esconder dos inimigos, ou por falta de outras roupas, ou por alguma outra razão semelhante” (Summa Theologiae II - II, questão 169, artigo 2, resposta à objeção 3).

Então o que explica Santa Joana D'Arc?

Conforme se constata da biografia de Santa Joana, a sua entrada no exército francês se deu por inspiração divina. Aos 13 anos, Santa Joana recebeu uma missão do próprio Deus para liderar seu país na Guerra dos 100 anos.

Possivelmente, Deus quis demonstrar por meio deste frágil e improvável instrumento, uma mulher, que o fim da Guerra dos 100 anos se daria por uma intervenção sobrenatural. Grandes prodígios aconteciam nas batalhas quando Joana comandava o exército. Intervenções divinas desse tipo são bem conhecidas nas Sagradas Escrituras, basta verificar a história de Débora (Jz 4), dos 300 de Gideão (Jz 7-9) e do cerco de Jericó (Js 6).

Portanto, Santa Joana não é um exemplo ordinário para as mulheres a respeito da profissão que devem exercer e nem das roupas que devem vestir. Santa Joana é um caso extraordinário que não pode ser exatamente imitado por todas as mulheres.

Contudo, quanto à representação universal de Santa Joana, ela é, geralmente, representada de armaduras e de saia, para que sua feminilidade não fique totalmente ocultada:



E Santa Gianna Molla?

Aqui, ressaltemos, novamente, as nossas considerações do artigo "O Trabalho da Mulher Casada e a Direita Feminista":

Primeiramente, é preciso recordar que os santos não viveram sempre nas condições ideais desejadas pela Igreja e nem tudo em suas vidas é realmente imitável.

Em segundo lugar, se há conflito entre a vida de um santo e a doutrina da Igreja devemos preferir sempre a última, pois ela sim é lâmpada para os nossos pés e luz para os nossos caminhos. Os ensinos da Igreja são seguros e perenes, mas a vida de um santo pode ter muitas influências condicionadas pela mentalidade de seu próprio tempo.

No caso de Santa Gianna, verificamos que alguns fatos da sua vida não são imitáveis por influências condicionadas à mentalidade de seu tempo. Santa Gianna, conforme apontamos no referido artigo, teve enormes dificuldades de conciliar suas atividades profissionais com seus deveres de mãe e esposa, a ponto de Pietro Molla pedir que ela considerasse deixar o emprego.

Assim, é razoável concluir que Santa Gianna, no que diz respeito às calças, apenas seguiu as influências do seu tempo da mesma maneira como tentou equilibrar o emprego e os deveres domésticos, isto é, tal como uma mulher moderna.

A representação sacra de Santa Gianna, no entanto, não é ela de calça, mas de vestido.


Outras mulheres que rumam aos altares também seguiram o mesmo padrão. Aqui façamos menção a Chiara Petrillo no uso de biquinis, roupa severamente reprovada pelos teólogos e Papas, como demonstramos no artigo "Conservadores católicos se rendem à imodéstia":


Vemos assim que apresentar santos que usaram roupas X ou Y imodestas não é um argumento para demonstrar que elas não são imodestas. Apenas ilustra o que queríamos apontar desde o início: nem tudo na vida dos santos é realmente imitável.

A respeito convém o artigo do escritor católico Peter Kwasniewski no artigo "Carlo Acutis e o Perigo dos Santos de Propaganda"

Deus trabalha com quem somos em nossa natureza humana em qualquer momento; Ele trabalha com as características, habilidades e talentos que temos. Deus toma nossa natureza humana em sua imperfeição e, se estivermos dispostos, santifica nossas almas, o que não significa corrigir todas as falhas naturais da mente ou do corpo, e às vezes significa deixar certas falhas como fraquezas através das quais Seu poder pode triunfar. De fato, até mesmo o grande apóstolo Paulo falou de um “espinho em sua carne” do qual ele implorou ao Senhor para livrá-lo, mas Deus não o fez (veja 2 Co 12:6–7).

No ponto em questão, se alguém tem pouco ou nenhum gosto em música, arte ou literatura, ou uma educação limitada, sabemos que Deus ainda pode levar essa pessoa a Si mesmo, trabalhando  dentro  dessas limitações, mas não  por causa  delas. Observe bem: simplesmente porque elas não são impedimentos à ação de Deus não as faz deixar de ser limitações — isto é, privações de perfeições devidas em uma natureza humana perfectível.

Tal santo em progresso será gradualmente desmamado de quaisquer  atrações inerentemente  pecaminosas. Mas Deus não faz normalmente de uma pessoa analfabeta um estudioso de Rhodes ou um artista talentoso, por mais generoso que Ele seja em Seus dons de graça real e santificadora. Mesmo com um santo em formação, seria necessária uma  educação real  da natureza humana de tal pessoa, e  esforço real  de sua parte, para trazer melhorias nessas áreas. Este não é o trabalho da graça — pelo menos não necessariamente.

O site do Padre Paulo Ricardo, também citando Peter Kwaskiewski, ponderou sobre a tendência atual de santificar todos os aspectos da vida de um santo pelo simples fato dele ter sido canonizado:

No que tange aos santos que viveram sob a nova barbárie cultural de nossos tempos, devemos tomar o cuidado de não “canonizar”, junto com a santidade deles, algo incidental a respeito de suas vidas modernas. Isso vai acontecer com bastante frequência de agora em diante. “Ah, o Beato Betinho gostava tanto de música pop! Não é maravilhoso? A música pop agora faz parte da santidade! Não importa o que você escuta ou dança!”, ou: “A Santa Carol amava sair por aí de moletom e com camiseta rosa fluorescente! Acredito que não importa mais como você se veste quando o assunto é ser santo”. É possível imaginar todos os tipos de cenários e falsas inferências como essas.

O modo de contornar esse problema — que, para ser justo, tem paralelos em toda época da Igreja; por exemplo, os santos da Idade Média tinham notavelmente uma má higiene, mas ninguém, ao meu conhecimento, sugere que os devamos imitar nesse aspecto — é lembrar a relação, e a distinção, entre fé e razão, natureza e graça. Um homem notável por sua santidade pode não o ser nos argumentos que apresenta de teologia; uma mulher de santidade indiscutível pode não ter bom gosto em matéria de arte. Como discípulos do Doutor Comum da Igreja, Santo Tomás de Aquino, precisamos ser capazes de fazer distinções e imitar o que merece ser imitado, desculpando, ao mesmo tempo, o que pode ser desculpado, ou ignorando o que é melhor que seja ignorado.

Considere o seguinte: se fosse necessário escolher, melhor seria dedicar-se à oração e ouvir música medíocre, ou vestir-se de modo medíocre, do que ser um egoísta mentiroso com gosto impecável em abotoaduras e gravatas-borboleta; mas o melhor é ser, ao mesmo tempo, santo e bem educado, piedoso e inteligente, porque isso representa uma perfeição mais completa da humanidade tal como Deus a pensou. Graças sejam dadas a Ele por podermos alcançar a bem-aventurança apesar de certos defeitos nossos, mas nem por isso eles se tornam admiráveis ou dignos de imitação.

Do exposto, se conclui aquilo que afirmamos no início deste artigo, a fé autêntica de um católico não significa uma instrução perfeita, principalmente se ele for criança (caso de Carlo Acutis), rude ou um adulto não erudito, o que parece ser a situação de Santa Gianna, Chiara Petrillo, Guido Schaeffer, etc. O biquíni de Chiara Petrillo não se tornará modesto porque ela utilizou, mas Chiara Petrillo poderá ser escusada de imodéstia na medida que agia de boa-fé e de acordo com a instrução que tinha.

Por fim, Bernardo, em defesa do uso de calças, faz referência ao costume. Argumenta que o costume é sempre citado nos bons livros de modéstia como fator a ser considerado no uso de roupas. Assim, a calça, sendo um costume generalizado entre as mulheres ocidentais, poderia não ser imodesto, já que é um traje costumeiro.

Há, de fato, muita verdade no que fala Bernardo. O costume é um grande parâmetro para a modéstia no vestir. Contudo, é preciso olhar o costume sob a luz correta. Costumes corrompidos de uma sociedade não podem ser seguidos. Apenas se o costume estiver de acordo com os princípios da modéstia que ele se torna um grande auxílio para a modéstia no vestir.

A respeito, o Pe. Luiz Fernando Pasquotto, IBP, fez uma bela consideração sobre o costume:

"Ao contrário de um pós-moderno, eu me visto para indicar o que eu sou. Eu não sou o resultado final a partir do que eu escolhi para me vestir.

A moda é uma característica da pós-modernidade. Você que escolha a roupa para ser de um certo jeito. Em outro dia você será de outro jeito, a partir do modelo de roupa que você vestir naquele dia.

Um dos problemas da modéstia, hoje em dia, é que não existe um costume da roupa de cada lugar. Cada um escolhe a roupa que quer. Se a pessoa não tem princípios, é um desastre.

Podem perceber. A gente tem que ficar o tempo inteiro refletindo se a roupa que a gente está usando é razoável ou não. Onde se tinha costume consagrado no lugar, ninguém pensava nisso aí. É aquela roupa e pronto. Não tem erro.

Uma das coisas que facilitou enormemente a imodéstia foi deixar ao critério de cada um como é que se deve vestir. Não estou dizendo que você deve ser totalitarista e impor uma roupa, mas era um costume baseado nas características daquele povo. Eles tinham se dado aquela roupa e ficava de modo estável. A modernidade fez questão de destruir isso daí e agora só tem os destroços." [33'07"]

Conferência "Modernidade, pós-modernidade e a família" - III Jornada de Casais da Capela N. Sra. das Dores, IBP.

O costume autêntico seria, portanto, aquele que distingue o estado de vida e o sexo da pessoa, salva o pudor e ainda é oriundo das características de um certo povo.

A calça moderna, evidentemente, não segue esses padrões. A calça feminina não distingue adequadamente as diferenças sexuais entre homem e mulher, não é eficaz para guardar o pudor e é um produto baseado no fundamento ideológico de que a mulher pode se vestir como ela quiser.

Se a calça fosse um costume autêntico para o público feminino, a moda pós-moderna certamente não existiria e não teríamos tantas consultoras de imagem e estilo por aí...

Sobre o Concílio Vaticano II

Bernardo em seguida passa a tratar do Concílio Vaticano II. E traz três problemas relacionados a ele: o idioma da missa e o idioma da missa. Conclui que nem o "Ebenézer" e nem o "Enzo" seguem o que a Igreja ensina a respeito e que fazem "livre interpretação dos textos do Magistério". Diz ainda que a Igreja sempre esteve em crise e o que importa hoje é como seremos santos.

Reforma Litúrgica

Bernardo, no entanto, não se delonga neste assunto. Ele sabe que é espinhoso.  É injusta a poderação de que o que Enzos e Ebenézers fazem com o Concílio é "livre interpretação do Magistério". A respeito da Reforma Liturgia, o que foi que o Concílio realmente disse?

Segundo o Kenneth D. Whitehead, insuspeito de tradicionalismo, o mau resultado da Reforma Litúrgica teria se dado em razão da abrangência das reformas pedidas pela Sacrossanctum Concilium, que não poderiam resultar em algo orgânico, juntamente com a intervenção acrítica dos liturgistas profissionais:

"A própria abrangência e complexidade do que estava implicado na decisão do Concílio Vaticano II de reformar toda a liturgia da Igreja Católica estavam quase fadadas, pela natureza das coisas, a resultar em muitos erros e até mesmo instruções conflitantes na efetiva execução das reformas conciliares. Ninguém sabia, ou não poderia saber, de antemão, como implementar as reformas litúrgicas, ou como elas iriam funcionar. E, às vezes, as próprias reformas particulares não foram decretadas em resposta a qualquer mandato específico do Concílio ou da necessidade dos fiéis. Em vez disso, muitas vezes, como sugerimos, elas parecem ter sido implementadas seguindo várias teorias de alguns de nossos "liturgistas" profissionais contemporâneos." (Mass Misunderstandings: the mixes legacy of the Vatican II liturgical reforms, p. 103)

Sim, um escritor católico continuísta está dizendo que a culpa pela crise litúrgica que passamos é do próprio Concílio Vaticano II, porque a reforma pedida foi ampla demais e não deu instruções suficientes de como fazê-la, sem contar quando não deu instruções objetivamente conflitantes. "Enzo" e "Ebenézer" são apenas frutos do embate sobre o que a Sacrossanctum Concilium quis dizer.

A crise litúrgica tornou-se tão caótica que um católico que tente viver uma fé simples indo à missa diariamente é ordinariamente desafiado pelos abusos litúrgicos. Hoje, por causa reformas feitas, infelizmente, desenvolver uma espiritualidade litúrgica tornou-se praticamente impossível. Estes desafios os santos "simples" de antigamente simplesmente não enfrentaram. Eles podiam ir à missa tranquilamente e aurir dela os mais belos frutos da devoção eucarística. Atualmente, dificilmente temos essa opção.

Sem uma liturgia correta também não temos acesso à Tradição, visto que a liturgia é o principal canal da Tradição.

Pontua-se assim que é equivocada a comparação de Bernardo da crise atual com as crises pretérias da Igreja. Bernardo cita crises em que a Igreja foi perseguida e santos foram martirizados. Porém, devemos dizer que crises de perseguição são crises gloriosas. Vivemos, no entanto, uma crise de natureza pior: uma crise de tibieza, falta de sabedoria e, principalmente, de profunda impiedade e confusão. Nenhuma crise da Igreja foi capaz de descaracterizar universalmente a liturgia católica. A nossa crise foi. Nenhuma crise foi capaz de praticamente extinguir as missões. A nossa crise foi. Nenhuma crise foi capaz de fazer padres abandonarem voluntariamente suas batinas. A nossa crise foi. Nenhuma crise foi capaz de produzir ódio do clero à Liturgia Romana tradicional. A nossa crise foi.

Sabemos que a Igreja já é vitoriosa pelas promessas de Cristo, mas não é nenhum tradicionalismo reconhecer que o momento da Igreja é grave e talvez o mais grave que ela já viveu.

Liberdade Religiosa

Sobre a liberdade religiosa, não houve explicação suficiente do Magistério a respeito. Foram inúmeros os esforços de teólogos e filósofos católicos para tentar explicá-la. Citemos apenas alguns nomes: John Murray, Brian Harrison, Basile Valuet, Bernard Lucien, Kenneth Whitehead, Matthew Levering, Joathas Bello, Rafael Llano Cifuentes... Quem está certo?

O tema da liberdade religiosa é um dos mais disputados e espinhosos do Concílio Vaticano II. Sua compreensão é dificultada, principalmente, pela sua linguagem, em razão do uso de expressões anteriormente condenadas pela Igreja, e pela práxis pós-conciliar do Vaticano. Foram feitas muitas revisões de concordatas que tiveram como resultado a simples entrega de nações católicas ao laicismo estatal.

Ademais, quando um católico ouve, por exemplo, que o sonho do Papa é uma Europa saudosamente laica, é inequívoco que ele poderá encontrar dificuldades em ver continuidade entre Dignitatis Humanae e a doutrina da Realeza Social de Nosso Senhor Jesus Cristo.

As dificuldades, portanto, que muitas vezes geram Enzos e Ebenézers são reais, não apenas "frescuras" de um católico que não consegue viver uma "fé simples". Ebenézers, em regra, são católicos de boa formação e que necessitam de demonstrações científicas da doutrina. Não é justo culpá-los de não ter uma "fé simples" quando o que buscam é apenas a recepção da fé conforme o seu grau de instrução.

Conclusão

A pretensão de Bernardo cremos que é reta. Ele apenas quer ensinar uma "introdução ao Catolicismo" ou dar as "linhas gerais" da religião católica, mas parece fazer isso tendo como foco de desconstrução principal o "Ebenézer", o católico tradicionalista.

Como relatamos aqui, a nova vibe do catolicismo brasileiro é o opusdeísmo cultural cujo efeito é a descontrução da onda tradicional que perdurou entre os anos 2011-2019.

Contudo, a experiência mostra que a fé católica é vivida de maneira muito mais simples em ambientes tradicionais. É inequívoco que nestes ambientes os princípios católicos são melhor compreendidos, como demonstrou a pesquisa da Pew Research de 2021, e é a boa vivência dos princípios que deixa a vida católica mais simples.

Citemos alguns exemplos:

1)  modéstia nos ambientes tradicionais deriva, geralmente, de autênticos costumes. Mulher com roupas de mulher. Homem com roupas de homem. Sejam roupas sociais ou não, a distinção é clara e eficaz. A modéstia "Opus Dei", porém, não. Ela deriva da elegância mundana, que por sua vez parte do princípio liberal de que cada um deve se vestir como quer, conforme sua própria autenticidade. Saia de um ambiente tradicional que custodia a modéstia e você verá do lado de fora apenas pessoas confusas, perdidas, a ponto dos próprios santos serem contaminados pela confusão generalizada. Provamos aqui que o próprio Bernardo confudiu-se sobre o conceito de modéstia que buscava esclarecer.

2) A música litúrgica de ambientes tradicionais é realmente sacra. A música litúrgica das paróquias comuns é guitarra, violão e bateria e um monte de cantos de bandas carismáticas. Tradicionais não precisam "batalhar" para ter uma liturgia digna, eles simplesmente as têm. Não é mais simples ser católico assim?

3) A comunhão em ambientes tradicionais é apenas de joelhos e na língua. Esta maneira tradicional não comunica de forma muito mais eficaz e simples a reverência com a Santíssima Eucaristia?

4) A Missa Tridentina não é um eficaz modelo para a boa celebração da Missa Paulina?

A fé da Igreja sempre foi muito simples, porque ela, na maturidade, foi tradicional. O Catolicismo Tradicional é a própria síntese da fé pura e simples. Encampar batalha contra os tradicionais é, com toda a certeza, tornar a fé mais complexa e difícil de ser compreendida.

sexta-feira, 5 de julho de 2024

Sobre a polêmica do Catecismo Romano do Centro Dom Bosco

Recentemente o Centro Dom Bosco divulgou o lançamento uma nova edição do Catecismo Romano ou Catecismo de Trento. A grande novidade da edição é que a cor do livro é amarela e o título dele é "Catecismo da Igreja Católica", quase idênticos ao Catecismo de São João Paulo II.

O lançamento se tornou polêmico, porque induziria os fiéis a comprarem o Catecismo Romano pensando ser o Catecismo de São João Paulo II.

O youtuber católico Rafael de Brito em um vídeo dirigido ao Centro Dom Bosco criticou duramente a nova edição:


Transcrição:

"Vocês colocarem o Catecismo com a cor amarela, não escrito "Catecismo Romano", "Catecismo de Trento" ou "Catecismo de São Pio X", mas "Catecismo da Igreja Católica" no vosso site, para o povo simples vocês não acham que não traz confusão? É claro que traz confusão, porque o Catecismo de Trento é tradicionalmente chamado de Catecismo Romano. [...] "Ah! Mas a cor não importa!". Importa sim! Sobretudo o título importa, porque vocês não fazem referência ao Catecismo de São João Paulo II. E aqui nesta postagem você deixam a entender que o Catecismo da Igreja Católica traz algumas abordagens problemáticas." [37'00"]

O Pe. José Eduardo fez o seguinte comentário em suas redes sociais:

Aos leigos católicos empoderados e talibãs da tradição, super apologetas do "Catecismo Romano" (pois este é o verdadeiro nome do Catecismo tridentino ou "Catecismo para os párocos", apesar de eles não serem nem tridentinos nem párocos), uma pequena observação:

"De outra parte, como devemos alcançar de Deus todos os bens por meio de santas orações, os párocos devem ensinar aos fieis que se abstenham de vez em quando das relações conjugais, por amor das orações e súplicas que fazem a Deus. Tal aconteça, principalmente, pelo menos três dias antes de receberem a Sagrada Eucaristia" (CATECISMO ROMANO, Parte II, VIII, n. 34).

Ora, como fazem os beatíssimos tridentinos para receberem a comunhão diária? Será que São Pio X errou quando estendeu essa possibilidade aos fieis ou ele queria que nenhuma família católica tivesse mais filhos ou, para tê-los, deixasse de comungar? Será que os atos conjugais, santificados pelo sacramento do matrimônio, impedem uma comunhão piedosa? 

Aliás, há outro ponto muito bonitinho na mesma seção, dessa vez, sobre os deveres da esposa:

"De boa vontade, vivam dentro de casa. Não saiam senão por necessidade e nunca se atrevam a fazê-lo, sem a permissão do marido" (Ibidem, n. 27).

E aí, meninas? Topam essa? Querem viver tais quais mulheres muçulmanas? Será que só porque algo é antigo é bom? Não há necessidade de bom senso? Será que os apologetas não desprezam demasiadamente a teologia?

O Catecismo tridentino não tem nada de mal, muito pelo contrário. Porém, catecismo sem teologia sem prudência pastoral sem discernimento = gente doida falando asneira.   #BoaTarde

O que pensar disso tudo?

Quanto às críticas de Rafael Brito. 

A cor do Catecismo realmente não importa. A cor amarela é oficialmente a cor da bandeira do Vaticano e, a princípio, não há qualquer problema de editar catecismos amarelos.

A crítica quanto ao título é, de fato, mais pertinente. Conforme pontuou aqui o Eduardo do canal "Três Vias", não faz sentido trocar o nome de um Catecismo já popularmente conhecido como Catecismo Romano para "Catecismo da Igreja Católica".

Segundo Eduardo, caso o título tenha sido mudado por uma estratégia de marketing, seria um erro, porque se previlegia o marketing ao invés da originalidade do título.

A crítica é razoável. 

Por outro lado, não é exatamente um erro chamar o Catecismo Romano de Catecismo da Igreja Católica, porque ele de fato o é. Os Catecismos novos não anulam os anteriores. Ademais, se a finalidade do Centro Dom Bosco era tornar o Catecismo de Trento mais popular por essa estratégia, então a finalidade foi alcançada. O bem foi feito.

Não há escândalo algum nisso.

Quando a imagem de "Pachamama" foi chamada de Nossa Senhora, muitos católicos entenderam como uma inculturação legítima. Pois bem, nomeia-se agora o Catecismo Romano de Catecismo da Igreja Católica e isto vira motivo para batalha?

Tenhamos senso das proporções.

Por fim, quanto às observações de Rafael Brito de que o Centro Dom Bosco possui reservas ao Catecismo de São João Paulo II, deve-se lembrar que o CDB nunca escondeu isso. Cremos, com São João Paulo II, que o Catecismo de 1992 é "seguro e autêntico, para o ensino da doutrina católica, e de modo muito particular para a elaboração dos catecismos locais", conforme a Constituição Apostólica Fidei Depositum. Contudo, deve-se observar que o Catecismo de São João Paulo II é um dos mais contestados da História da Igreja ao contrário do Catecismo Romano. Além disso, é um Catecismo que sofreu mais alterações doutrinárias do que o Catecismo de Trento (Ex: doutrina sobre a pena de morte e a dignidade do ser humano). Portanto, não é irrazoável que o Centro Dom Bosco prefira para obras de apostolado o Catecismo de Trento, já devidamente provado pelo tempo.

Quanto às críticas do Pe. José Eduardo.

Faremos comentários em partes da crítica do Pe. José Eduardo:

Aos leigos católicos empoderados e talibãs da tradição, super apologetas do "Catecismo Romano" (pois este é o verdadeiro nome do Catecismo tridentino ou "Catecismo para os párocos", apesar de eles não serem nem tridentinos nem párocos), uma pequena observação:

O Centro Dom Bosco está lançando o Catecismo Romano como uma editora, não como leigos. Ainda assim, não há problema em leigos serem "super apologetas" do Catecismo Romano, porque diversos Papas e santos também o foram.

É proibido leigo defender e ler o Catecismo Romano? Em nenhum momento a Igreja ensinou isso.

"De outra parte, como devemos alcançar de Deus todos os bens por meio de santas orações, os párocos devem ensinar aos fieis que se abstenham de vez em quando das relações conjugais, por amor das orações e súplicas que fazem a Deus. Tal aconteça, principalmente, pelo menos três dias antes de receberem a Sagrada Eucaristia" (CATECISMO ROMANO, Parte II, VIII, n. 34).

Ora, como fazem os beatíssimos tridentinos para receberem a comunhão diária? Será que São Pio X errou quando estendeu essa possibilidade aos fieis ou ele queria que nenhuma família católica tivesse mais filhos ou, para tê-los, deixasse de comungar? Será que os atos conjugais, santificados pelo sacramento do matrimônio, impedem uma comunhão piedosa?

O comentário é aberrante, exagerado. Em nenhum momento o Catecismo Romano pretendia atrapalhar os esposos de abrir-se à vida ou impedi-los de comungar diaria e piedosamente, mas promover "de vez em quando" a recomendação de São Paulo:

“Não privem um ao outro de terem relações, a menos que ambos concordem em abster-se da intimidade sexual por certo tempo, a fim de se dedicarem de modo mais pleno à oração." (1Co 7,5)

Certamente o ato conjugal antes da Comunhão não impede uma comunhão piedosa, mas é mais verdade que a abstinência dele antes de comungar é mais santificadora. Nesse sentido, nota-se as palavras de Pio XII:

"Alguns afirmam, de fato, que a graça, comunicada ex opere operato pelo sacramento do matrimônio, santifica o uso do casamento a ponto de o tornar instrumento mais eficaz que a mesma virgindade para unir as almas a Deus, porque o casamento cristão é um sacramento, mas não o é a virgindade. Nós declaramos porém essa doutrina falsa e nociva. Sem dúvida, o sacramento concede aos esposos a graça de cumprirem santamente o dever conjugal e reforça os laços do afeto recíproco que os une; mas não foi instituído para fazer do uso do matrimônio o meio mais apto, em si, para unir com o próprio Deus a alma dos esposos pelos laços da caridade." (Sacra Virginitas, 36)

Antonio Royo Marín em "Teologia Moral para Leigos" também faz seguinte observação:

"Não há nenhuma proibição para o ato conjugal por razões de tipo religioso (v.g., na quaresma, advento, dia festivo, dia de comunhão, etc.). Porém, os cônjuges podem, se quiserem, abster-se por mortificação em algum desses tempos, mesmo sem nenhuma obrigação. Por razões de decência, é conveniente abster-se pouco antes de se aproximarem da Sagrada Comunhão ou pouco depois de tê-la assistido." (n. 619)

No mesmo sentido, Heribert Jone em "Moral Theology":

 As relações conjugais são lícitas em qualquer momento, embora durante os períodos de penitência seja aconselhável a temperança. Também é lícito ir à Sagrada Comunhão na noite anterior, embora aqueles que raramente se comunicam façam bem em se abster neste momento; quando solicitado pela outra parte, porém, é dever saldar a dívida conjugal. As esposas devem tomar cuidado para não cumprirem suas obrigações de má vontade. (n. 752)

O Pe. José Eduardo é Doutor em Teologia Moral, mas esqueceu que a abstinência do uso do matrimônio por razões religiosas é altamente santificadora principalmente em tempos de penitência e antes da comunhão?

Acerca  da comunhão diária, embora ela seja possível, ela pode não ser útil para aqueles que receberão o sacramento sem grande devoção, como ensina Santo Tomás:

A respeito do uso deste sacramento, duas coisas podemos considerar. Uma, relativa ao próprio sacramento, cuja virtude é salutar aos homens. Por isso é útil o recebermos cotidianamente, para cotidianamente lhe colhermos o fruto. Por onde diz Ambrósio: Se todas as vezes que o sangue de Cristo é derramado, pela remissão dos pecados o é, devo sempre recebê-lo, que sempre peco; devo sempre ter o remédio. — A outra luz, podemos considerá-la relativamente a quem o recebe, que deve se achegar a este sacramento com grande devoção e grande reverência. Portanto, quem cotidianamente se julgar preparado para tal, é aconselhável que cotidianamente o receba. Por isso Agostinho, depois de ter dito — recebe o que todos os dias te é útil — acrescenta: Vive de modo que mereças recebê-lo cotidianamente. Mas como muitas vezes, em casos freqüentes, muitos impedimentos ocorrem contra essa devoção, por indisposição do corpo ou da alma, não é útil a todos achegar-se a este sacramento cotidianamente, mas só as vezes em que um se julgue preparado. Por isso um autor diz: Receber cotidianamente a comunhão eucarística, não o louvo nem o censuro. (S. Th. III, q.80, a.10)

Portanto, o padre parece não ter claro que as recomendações do Catecismo favoreciam até mais a santificação dos esposos do que agora, vez que a recomendação de abstinência do uso do matrimônio antes de comungar está completamente ausente do Catecismo de São João Paulo II.

3. "De boa vontade, vivam dentro de casa. Não saiam senão por necessidade e nunca se atrevam a fazê-lo, sem a permissão do marido" (Ibidem, n. 27).

E aí, meninas? Topam essa? Querem viver tais quais mulheres muçulmanas? Será que só porque algo é antigo é bom? Não há necessidade de bom senso? Será que os apologetas não desprezam demasiadamente a teologia?" 

Infelizmente, o comentário do padre é extremamente infeliz. Nenhuma cristã, mesmo a do século XVI, que obedeceu o Catecismo Romano, estava sendo instigada a viver como muçulmana. Os princípios que permeiam o n. 27 eram o da hieraquia familiar e da importância da mulher dentro do lar. Pio XI, na Encíclica Casti Connubii, ensina que viver estes princípios não coloca as mulheres entre as pessoas de direitos menores (minorias), como demonstramos na postagem "O Trabalho da Mulher Casada e a Direita Feminista". A alegação de que isso seria de alguma forma "islamismo" é uma depreciação objetiva do Catecismo de Trento.

O Catecismo Romano também neste ponto é mais valioso, porque descreve com exatidão os deveres dos esposos como a submissão da esposa ao marido e a necessidade do marido ser o provedor do lar, ensino ausente no Catecismo de São João Paulo II, mas necessário para os dias atuais corrompidos pelo feminismo.

O Catecismo Romano é um tesouro, um verdadeiro colosso da Tradição Católica. Já foi devidamente testado pelo tempo, aprovado pelos santos e não deve nada a ninguém.

Recomendamos assim fortemente a Catecismo da Igreja Católica promulgado pelo Concílio de Trento.

quinta-feira, 4 de julho de 2024

Sobre o "Tradismatismo"

Em um recente reels de Instagram a página de humor "Brasil RTC" compartilhou um vídeo do Pe. Roger Luis, numa missa de Vígilia Pascal 30.03.2024 da Canção Nova, puxando em latim o "Gloria" da Missa De Angelis ou Missa VIII:


Para a surpresa de todos o que se seguiu, no entanto, foi o Gloria cantado em português ao som de bateria, guitarra, palmas e danças. A missa completa pode ser conferida aqui.

A página atribuiu o episódio ao fenômeno do "tradismatismo". A expressão foi cunhada pela primeira vez pelo Pe. José Eduardo, sacerdote da diocese de Osasco-SP, em 2016, no seu Facebook.


A postagem teve muitas reações, compartilhamentos e comentários. Gostaríamos, assim, de investigar o conceito de "tradismático" e se ele é, como dizem alguns, uma pessoa tradicionalista que gosta siricantalanapraia.

O que é o tradismatismo?

Começemos então com o autor do conceito de tradismatismo, o Pe. José Eduardo. Em uma postagem do dia seguinte o sacerdote prestou alguns esclarecimentos sobre a nova palavra cunhada:

OS TRADISMÁTICOS E A CONTRADIÇÃO 

Ao escrever ontem sobre os #Tradismáticos, estava apenas descrevendo um fenômeno real (basta olhar o número de curtidas e de pessoas que se identificaram com a descrição), e não fazendo um juízo de valores. Cada qual tenha sua opinião sobre o fato. Mas, o que me parece impossível é negá-lo.

Nossa Igreja é católica, universal, justamente por isso: cabem todos, aliás, como disse Nosso Senhor ao comparar a Igreja com uma rede de pesca que recolhe peixes de todo tipo, rompendo, assim, todo nazismo religioso.

O filósofo marxista Ernst Laclau, em "Hegemonia e estratégia socialista", ensina que o movimento revolucionário, para alcançar o poder, precisa dividir a sociedade em grupos antagônicos, criar contradições e usá-las em seu favor, escolhendo eventualmente a contradição que for mais favorável à sua vontade de dominação.

De algum modo, os católicos de nossos dias se cansaram desse jogo dialético, estão jogando fora os rótulos e criando liberdade de tráfego, excluindo todas as tendências progressistas e socialistas, que eles já perceberam ser justamente uma das causadoras de rotulacões, além de serem a representação oposta do que desejam: a exclusão completa do sobrenatural e a usurpação da Igreja como instrumento de poder.

Como no Brasil muita gente tem a mentalidade de torcedor, e se apega ao rótulo que foi criado para ser sua camisa de força mental como o fanático de um time, leituras como essa acabam se tornando quase impossíveis. De fato, as pessoas apressam-se em identificar quem é a favor ou contra à sua tribo, incapacitando-se para entender realidades mais complexas, que transcendem esse jogo.

Cabe à nós, como Igreja, não apenas interpretar o fenômeno, mas interagir com o mesmo de modo criativo, sabendo integrá-lo num esforço positivo de apostolado. Caso contrário, pela pressa de separar o joio do trigo, iremos sacrificar o trigo e, como diz Jesus no Evangelho, isso não é tarefa nossa. 

No mundo do puritanismo, repetidas vezes condenado pela Igreja, tudo se reduz ao simplismo do "preto ou branco", no contraste mais absoluto entre ambos. Desde o maniqueísmo, montanismo, catarismo, até chegarmos à tendências puritanistas mais modernas, a contradição sempre foi a armadilha em que caíram aqueles que não sabem viver no tempo das ambivalências, no tempo da Igreja militante, e querem viver apocalipticamente a antecipação da Jerusalém celeste aqui. Esconde-se aí um complexo de milenarismo, complexo que arroga à sua inconsciente vítima a prerogativa de acusar de hereges a todos que não recaem sob seu estreito horizonte de consciência, enquanto ele mesmo desconhece ou tem uma noção vaga e confusa do que seja "heresia", a negação pertinaz do dogma, que não foi negado por ninguém.

Não percebem estes que, deste modo, caem nas malhas dialéticas da contradição, e fazem direitinho o jogo do inimigo. Aceitam a divisão ao invés de verem de um ponto mais alto as consonâncias, integrando num todo harmônico aquilo que, em si, nunca foi contraposto.

A culpada do engodo é a ignorância histórica. Quando se lê a vida dos santos pregadores e místicos vê-se claramente que os mesmos sofreram as mesmas incompreensões, exatamente por enxergarem esse todo desde cima, não se implicando nas contradições daqueles que têm uma visão metonímica.

O fato é que os #Tradismáticos escandalizam os progressistas, os tradicionalistas e até os próprios carismáticos. Estão hoje em maior e crescente número, mas são os mais "desigrejados" de todos. Perambulam de lado a lado sem encontrar guarida e compreensão…

Este é o fenômeno. As opiniões acerca dele podem ser as mais plurais possíveis. 

Os rótulos já foram rasgados, o tráfego está aberto e bem-aventurado quem não se escandalizar disso, antes, souber ser Cristo de braços abertos, como São Paulo, que se fez tudo para todos!

Notemos que o padre fala que está descrevendo um novo movimento e que os "rótulos já foram rasgados", mas quando olhamos as postagens do sacerdote de 9 e 10 de outubro de 2016 não vemos qualquer descrição do movimento e nem definição do conceito.

Então, afinal, do que estamos falando?

Em um shorts do Youtube o Pe. Francisco do Amaral buscou tentar explicar o que é o tradismatismo:

Transcrição:

Existe católico tradismático?

Em certo sentido todo católico é tradismático. Porque o católico é chamado a abraçar tudo aquilo que Jesus deixou. Então o católico abraça o Magistério, a Tradição, a Escritura, os sacramentos, as devoções e os carismas da Igreja.

Agora, a gente pode falar também "ser tradismático", como eu me identifico, no sentido de amar as tradições litúrgicas da Igreja, os ritos válidos, o incenso, a batina, e ao mesmo tempo se identificar com a espiritualidade de Pentecostes, como a gente vive da Renovação Carismática Católica. E nesse sentido, também eu me identifico como tradismático.

Mas eu vou falar a verdade para vocês. Eu não gosto muito desse negócio de rótulo, não. Católico carismático, católico tradicional, católico isso, católico aquilo. Eu acho que isso pode dividir a Igreja. Então, o tradismático, nesse sentido que eu estou falando, ele não quer ser um novo rótulo, não. Ele quer falar de um católico que quer abraçar toda a verdade deixada por Jesus na Igreja.

Pedro Isnard, carismático, em canal no Youtube também buscou definir o que é tradismático:


Nas palavras de Pedro, você é tradicional quando "ama liturgia, ama tudo que a Igreja trouxe pra você ao longo dos anos, reza um Pai Nosso e uma Ave Maria em latim, vai ao Novus Ordo, vai a Missa Tradicional (tridentina) e está tudo bem. Você está em casa, você é católico." [01'42"]. Após, Pedro acrescenta que tradismático é o indivíduo que é tradicional e que vive o carisma mais tradicional de todos, o dom de línguas vivido pela RCC.

Por fim, Padre Paulo Ricardo, ao receber a pergunta "É possível ser tradismático?" de uma moça carismática que se identifica com a Missa Tridentina, responde que ser católico e tradicional é pleonasmo. Em seguida, ela faz uma alusão à Carta aos Coríntios de São Paulo, na qual o apóstolo fala em "guardar tradições" e também descreve os dons carismáticos. Assim, dá a entender o padre que é possível ser "tradismático".


O que se observa nas três definições colhidas é que "tradicional" nunca é definido no sentido de "tradicionalista", e sim num significado mais largo que mais se aproxima de "conservador", isto é, aquele que gosta que as coisas sejam feitas "conforme as regras da Igreja", independente de quais sejam essas regras.

Tradicionalista, contudo, esteja ou não em comunhão com a Igreja, nunca pode ser descrito como um mero conservador, pois ele é fruto de um incômodo. Um incômodo com a direção pastoral que a Igreja tomou após o Concílio Vaticano II, ou seja, as atuais regras.

Pode-se dizer que a espiritualidade tradicionalista consiste na preservação da Missa de São Pio V, dos hábitos e devoções preconciliares e um acento crítico ou de reserva às novas pastorais litúrgica, catequética e de evangelização pós-conciliares.

Nesse sentido, destaca-se a descrição do carisma do Instituto Bom Pastor (IBP) em seu site:
"O carisma específico do Instituto do Bom Pastor, ou seja, o que o torna específico e a sua razão de ser, é a defesa e difusão da Tradição Católica em todas as suas formas: doutrinal, apostólica e litúrgica. Em particular, os padres do IBP celebram a missa exclusivamente no rito tradicional, ou seja, segundo a liturgia conhecida como “São Pio V”. Além disso, o Instituto foi fundado com a tarefa explícita de oferecer uma crítica construtiva e teológica de certas reformas nascidas do Concílio Vaticano II, uma crítica que visa oferecer a toda a Igreja um novo olhar sobre a sua própria identidade.

Este apego à Tradição é decididamente para os sacerdotes da IBP uma forma de servir a Igreja, na submissão ao Papa, ao serviço dos bispos católicos, e para o bem de todos os fiéis: é a expressão do seu desejo de oferecer a toda a Igreja e ao mundo as riquezas e os benefícios da Tradição Católica como um tesouro do qual todos devem haurir."

No protocolo de acordo assinado por Mons. Lefebvre e a Santa Sé em 1988, nota-se igualmente um certo "direito de reserva" da FSSPX a respeito de certas reformas conciliares:

"Em relação a certos pontos ensinados pelo Concílio Vaticano II ou relativos a reformas posteriores da liturgia e do direito, e que nos parecem dificilmente conciliáveis ​​com a Tradição, comprometemo-nos a ter uma atitude positiva de estudo e de comunicação com a Santa Sé, evitando toda a polêmica."

No livro "Considerações sobre as formas do rito romano da santa missa", a Administração Apostólica São João Maria Vianney justifica a preferência pela Missa de São Pio V reconhecendo o cenário crítico do Novus Ordo:

"Ninguém de correta visão pode negar a existência da atual crise na Igreja, afirmada por vários Papas. E essa crise tem muito a ver com a Liturgia, especialmente após a reforma conciliar, que, infelizmente deu azo a muitos abusos litúrgicos. [...] a Missa na forma extraordinária do Rito Romano, por sua maior precisão e rigor nas rubricas, apresenta mais segurança e proteção contra tais abusos litúrgicos."

No site do Instituto Cristo Rei e Sacerdote também justifica a celebração da missa tradicional em razão das muitas mudanças ocorridas na liturgia após o Concílio Vaticano II:

"O Instituto de Cristo Rei celebra a Liturgia Romana clássica, a "Missa Latina", em sua forma tradicional de acordo com os livros litúrgicos promulgados em 1962 pelo Papa São João XXIII. Durante seu pontificado, o Papa São João Paulo II exortou os bispos a serem generosos em permitir seu uso. Foi com sua bênção que o Instituto começou a celebrar a Missa Tradicional.

O Papa Bento XVI também desejou que o tesouro da liturgia romana tradicional, que foi celebrada sem mudanças por séculos e séculos, fosse preservada para todas as gerações. Seguindo os passos de São João Paulo II, o Papa Bento XVI, com seu documento histórico Summorum Pontificum, restaurou aos padres a liberdade de celebrar a "forma extraordinária" do rito romano.

A Missa Latina Tradicional foi a forma exclusiva celebrada durante o Concílio Vaticano II. Na verdade, a maioria das mudanças que foram introduzidas pela reforma litúrgica dos anos 1960 ocorreram nos anos após o Concílio Vaticano II. O próprio Concílio nunca aboliu a liturgia tradicional, e seu famoso documento sobre a Liturgia da Igreja, Sacrosanctum Concillium, menciona apenas a possibilidade de algumas adaptações; ele nunca pediu uma mudança de linguagem, a remoção de orações, nem virtualmente nenhuma das práticas agora comuns no Novus Ordo Missae, a “Nova Missa”."

Portanto, um católico tradicionalista nunca será um "tradicional" no sentido de "conservador". A distinção é importante, porque pode parecer para muitos que, ao se falar em "tradismáticos",  que há um movimento de adesão de católicos tradicionalistas à espiritualidade carismática quando simplesmente não há. Este é o tema o que abordaremos no tópico a seguir.

Buscando entender o fenômeno

1. Tradismatismo: um movimento unilateral

É necessário constatar o seguinte fato: o tradismatismo não é uma tendência nos círculos tradicionalistas. Não se vê o fenômeno tradismático entre católicos ligados ao Instituto Bom Pastor, Administração Apostólica São João Maria Vianney, Montfort, Centro Dom Bosco, IPCO, etc. Não há grupos de oração em línguas, batismos no Espírito Santo e Cercos de Jericó entre tradicionalistas, mas há grupos inteiros de carismáticos cada vez mais adotando formas tradicionalistas. O tradismatismo é um fenômeno específico da Renovação Carismática.

Neste ponto discordamos do Pe. José Eduardo que os tradismáticos sejam pessoas não compreendidas e "desigrejadas". Tradismáticos são carismáticos em busca da Tradição.

2. A romanização da Renovação Carismática

Conforme descrevemos aqui, entre os anos 2011-2019, houve um verdadeiro boom do catolicismo tradicional no Brasil. Neste período, se observou muitos católicos carismáticos descobrindo a Missa Tradicional e aderindo-a. Em regra, os carismáticos que participavam ativamente de apostolados tradicionais deixavam a Renovação Carismática entendendo que ela havia sido uma importante porta de entrada para o Catolicismo, uma espécie de infância do católico, mas que ao se adquirir maior formação catequética e litúrgica a consequência natural seria o catolicismo tradicional. Outros não tão assíduos permaneceram em suas comunidades carismáticas, mas se tornaram mais comedidos. Quiseram manter seu carisma, mas entenderam os diversos problemas que permeiam o carismatismo.

Em suma, o desenvolvimento do catolicismo tradicional no país provocou e têm provocado o que chamaremos aqui de romanização da Renovação Carismática, isto é, uma maior tomada de consciência da necessidade de readequação do carismatismo à identidade católica.

Expliquemos.

Como é arquisabido, a RCC é oriunda de movimentos neopentecostais e historicamente sempre lhe foi muito ínsito certa assimilação da cultura protestante neopentecostal (biblicismo, fundamentalismo, sentimentalismo, worship, etc). Todavia, o crescimento do catolicismo tradicional no Brasil desencadeou em alguns setores da Renovação um processo de afastamento das fontes protestantes e de aproximação das fontes católicas. Entendemos que este é o verdadeiro tradismatismo que vem ocorrendo entre os carismáticos nos últimos anos, a purgação gradual do neopentecostalismo protestante no movimento.

A esquerda e a direita da RCC se posicionam conforme o afastamento ou a aproximação das fontes católicas.

3. Um processo lento

Evidentemente, essa romanização não significa uma "tridentinização" da carismatismo como alguns querem fazer crer, mas sim uma certa dose de conservadorismo num movimento muito conhecido pela sua índole antilitúrgica e desprendida de fórmulas, que cheirava mais a protestantismo do que catolicismo. Fazemos essa distinção porque, realmente, o tradicionalismo ligado à Missa Tridentina não têm recebido influências carismáticas em sua espiritualidade. Parece-nos que o tradicionalismo e o carismatismo ainda são espiritualidades antagônicas. O tradicionalismo é afirmação triunfante do romanismo enquanto que o carismatismo é uma afirmação triunfante do ecumenismo. Tradicionalistas rejeitam ou não promovem o ecumenismo. Carismáticos, por sua vez, falam, muitas vezes, de pregadores e avivamentos protestantes como se pertencessem à sua religião.

É patente, no entanto, que o processo de romanização da RCC tem sido muito lento. A Renovação Carismática ainda possui muitos trejeitos protestantes. Ela não consegue separar muito bem, por exemplo, o que é próprio para grupos de oração do que é adequado para a liturgia.

A RCC, ordinariamente, ao invés de se render ao sensus perennis universalis Ecclesiae da tradição musical católica, promove na liturgia, via de regra, a marca e o estilo dos seus próprios grupos, geralmente gospel, e assim massificam o seu produto musical. 

Nota-se, a respeito, a Comunidade Colo de Deus, que praticamente reproduz os seus shows na missa e talvez seja, neste aspecto, o pior dos exemplos. Neste vídeo, tomado apenas para ilustrar, a missa e o padre realmente ficam em segundo plano enquanto predominam as "performances" dos músicos e, claro, a "Voz Gigantesca" dos seus animadores (gritaria e falatório intermináveis).

Já outras comunidades como Shalom, Fraternidade João Paulo II, Caminho, Instituto Hesed, etc., possuem missas mais comedidas, mas, musicalmente, dificilmente reproduzem um canto litúrgico autêntico. Suas músicas são quase sempre modernas (gospel) acompanhadas de violão, bateria e guitarra; o órgão de tubos, instrumento preferido pela Igreja, fica aos cuidados das teias de aranha. 

Neste vídeo de uma missa do Instituto Hesed observa-se moças de véu, religiosos de hábito, altar com arranjo beneditino, cantos em latim, etc., mas, novamente, com melodia inadequada, instrumentos inadequados, freira na bateria, músicas não litúrgicas cantadas em shows de cantores carismáticos como Irmã Kelly e Eugênio Jorge, danças, entre outros.

Nesta outro vídeo, agora da missa da Pe. Roger Luis, além de todo o paranoma inadequado anterior há o acréscimo de orações espontâneas e em línguas em menos de 15 min de missa.

Estes exemplos comprovam que ainda há na RCC um contínuo esquecimento das orientações do Discatério para o Culto Divino acerca da liturgia, mesmo entre carismáticos que seriam denominados por muitos como "tradismáticos".

“A eficácia das ações litúrgicas não está na busca contínua de novidades rituais, ou de simplicações ulteriores, mas no aprofundamento da palavra de Deus e do mistério celebrado, cuja presença está assegurada pela observância dos ritos da Igreja e não dos impostos pelo gosto pessoal de cada sacerdote. Tenha-se presente, ademais, que a imposição de reconstruções pessoais dos ritos sagrados por parte do sacerdote ofende a dignidade dos fiéis e abre caminho para o individualismo e o personalismo na celebração de ações que diretamente pertencem a toda Igreja”. (Liturgicae instaurationes, n. 1)

O panorama da música carismática atual na liturgia é fundamentalmente contrário ao ensino da Igreja sobre a música sacra e litúrgica. Contudo, esperamos que o processo de romanização que passa alguns setores da RCC possa finalmente trazer a devida maturidade ao movimento.

Talvez, seja o Pe. José Eduardo o melhor exemplo de carismático "romanizado" ou "tradismático" que sabe distinguir o culto de oração carismático da liturgia pública da Igreja. Note-se como em suas missas o órgão é utilizado bem como o canto gregoriano:


Pe. José Eduardo não é um católico tradicionalista ou um sacerdote conhecido por rezar Missas Tridentinas. Suas missas são versus populum, possui leitoras, acólitas, totalmente em vernáculo, coisas que um sacerdote tradicionalista simplesmente rejeitaria. Mas é notório que suas missas não possuem um espírito carismático. Nenhum católico se sente "colonizado" pela RCC nas missas do padre como ocorre nas missas da Canção Nova, Colo de Deus, Instituto Hesed e afins.

Conclusões

1. O tradismatismo não é a síntese de tradicionalismo com carismatismo.

2. É um movimento que parte de dentro da RCC.

3. O tradicionalismo e a RCC são espiritualidades antagônicas, visto que a primeira parte de um acento crítico ao ecumenismo e às novas pastorais enquanto que a segunda é essencialmente ecumênica e amante das novas formas pastorais.

4. O tradismatismo é, na verdade, a romanização do carismatismo, isto é, uma maior assimilação da identidade católica em um movimento essencialmente caracterizado pela sua afirmação ecumênica.


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